a travessia
fui
parti
despi-me de mim
exauri-me de ser eu
na ânsia de já não ser
fui
talvez outro
talvez o mesmo
com outro rosto
já não lograva ser eu
insurgiu-se
a ânsia do desconhecido
ser o eu que não conhecia
deixei para trás os infortúnios
para já não viver de memórias
desfiz-me de lembranças inglórias
lentamente empreendi
a viagem que me aturdia
pouco importava que tivesse volta
bastava-me ter ida
a travessia
Valério Maúnde, in O Mar & Amar, Maputo, 2020
quem sou?
sou filho da chuva
que não sabe senão ser gota
que tomba impetuosamente
de folha
em folha
numa viagem sem volta sou o ouvido
que no silenciar das vozes ouve silêncios
sou o silêncio entre vozes que se erguem
silenciosamente sem ouvidos sou tudo
sem nada ser
sou o alvorecer
no anoitecer
não sou poeta
mas o tenaz e ávido anseio de o ser
Valério Maúnde, in O Mar & Amar, Maputo, 2020
de que te rias?
eu ria-me do que te rias
ria-me porque te rias
ria-me de te rires
ria-me do teu sorriso
ria-me de me rir de ti
ria-me de ti e de mim
ria-me de nós
Valério Maúnde, in O Mar & Amar, Maputo, 2020
sei
da chuva sei só a gota
do mar, as fugidias ondas
do céu, a nuvem
da terra, o grão, a raiz sem tronco
do vento, a brisa
da saudade, a ausência
do amor, a dor
Valério Maúnde, in O Mar & Amar, Maputo, 2020
Natural de Maputo, Moçambique. É licenciado em ensino de Português pela Universidade Pedagógica de Maputo. É professor de Língua Portuguesa, revisor linguístico e escritor. A sua bibliografia inclui obras académicas de investigação linguística, didáctica, narrativas de ficção, poesia e guiões de radionovelas. A sua obra de estreia é uma antologia poética intitulada ‘O Mar & Amar’. É Membro Fundador e Perpétuo do Círculo Académico de Letras e Artes de Moçambique e Membro Correspondente da IdeiArte Cultura/África & Brasil.
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