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Dora Nunes Gago

Atualizado: 27 de mai. de 2023





MEMÓRIA DO PRESENTE



A ausência devolveu

cada cor

cada forma

à sua essência.

Apenas nós permanecemos

inseguros,

assustados,

incautos,

a procurar a memória

dos nossos passos

nas ruas calcetadas

de vazio.



 


CRÓNICA DE UMA PESTE ANUNCIADA



“O ano do Rato será muito fraco para toda a humanidade, marcado por epidemias, doenças, convulsões a nível político e económico, grande instabilidade, muitas manifestações, protestos a nível mundial…” – vaticina o Mestre Hung, baseando-se num antigo almanaque chinês. Corre o dia vinte e quatro de Janeiro, véspera de Ano Novo Lunar e, no noticiário da TDM de Macau, são anunciadas, como sucede anualmente, as previsões, desta vez para o Rato de Metal, que iniciará um novo ciclo de doze anos, reinando em 2020, tal como sucedeu em 1960.


Paira aqui, em terras do Oriente, já a sombra ténue do vírus de Wuhan, a amainar as comemorações do Ano Novo marcadas por uma timidez recatada, ao invés da habitual estrondosa euforia dos panchões. Na verdade, este rato bravio transporta no dorso um rosário de incertezas, uma questão aparentemente ainda circunscrita à China, contemplada de longe pelo mundo ocidental, como um filme longínquo a entreter uma tarde de fim-de-semana.


Dias depois, o fecho dos casinos de Macau e de todos os estabelecimentos, durante duas semanas, teve um sabor de apocalipse. As ruas a formigar de turistas tornaram-se desertas, varridas pelo vazio do medo. As fronteiras fecharam, as saídas de casa restringiram-se apenas ao essencial. Do outro lado do mundo, amigos queriam saber notícias, ainda longe de prever que 2020 seria o “ano da peste”, que poderia ter sido forjado pela pena de Albert Camus ou de qualquer outro dos escritores que escreveram sobre epidemias.


Semanas depois, por todo o mundo, o vírus é rei e senhor, alastra, colhendo vidas. Centenas, milhares de mortos por dia, a Europa confinada – a vida adiada, suspensa... Para além da prioritária questão de saúde, também o desemprego se transfigura num vírus paralelo a galopar atrás do Covid 19.


Um apartamento converte-se num mundo, ou mais literalmente, no próprio “mundo”, para quem tem o privilégio de um tecto, de um trabalho a desenvolver entre essas quatro paredes. As horas esvaem-se num ritmo estonteante. Muitos queixam-se do confinamento, da ausência de vida social, de ser fim-de-semana todos os dias. Aqui, esse hiato temporal ainda não chegou, nem sequer para vencer a fronteira da página word em branco. Teses acumulam-se para corrigir, aulas para preparar, dar on-line.


Leio sofregamente, ansiando por escrever. Tantas histórias a viverem em mim, a correrem-me nas veias, a habitarem ainda um qualquer espaço recôndito da não existência. Pedem para emergir, anseiam por um soro modelador que lhes dê forma, que as consubstancie através da feitiçaria da palavra. Digo-lhes que esperem, que aguardem mais um pouco... E o parto da escrita acaba adiado sine die... Amanhã dar-lhes-ei uma hora, roubada às obrigações profissionais. Não, talvez depois de amanhã, hoje, o cansaço não autoriza. E vem-me à ideia Balzac escrevendo pela noite dentro, alimentado a café, assim como tantos, tantos outros que o fizeram, desafiando as forças até à exaustão... O ofício não se faz de sonhos, não se materializa em ideias vagas, não se compadece com adiamentos devidos a compromissos de outra ordem. É um sacerdócio ao qual te dedicas, abdicas, obedecendo a uma voz suprema, a intimar, a ordenar que escrevas o ditado, sob pena de o perderes para sempre. Só precisas de tempo (esse tesouro valioso, tantas vezes desprezado, negligenciado, ao longo das nossas vidas), de papel ou de um computador. O antigo e mítico receio do papel em branco, agora transposto para o ecrã luminoso, onde o vazio ganha forma – a forma, tantas vezes, do fracasso. Resta insistir, semear, mondar e podar os canteiros das palavras. Mesmo que o mundo tenha ficado reduzido a um campus universitário de 1 km2 quadrado num território diminuto, uma bolha protectora, a partir da qual assistimos agora ao “filme do vírus”, que em Macau sempre ficou nas margens, devido às medidas adoptadas pelo governo. Meses depois, aquilo que se queria fazer quando houvesse tempo, continua adiado. A vida redimensiona-se, trajada de uma normalidade insólita de onde foram banidas, por exemplo, as viagens. Tempo de parar, de ultrapassar as saudades plantadas pela impossibilidade da antes imprescindível ida a Portugal no Verão. Tempo de lançar raízes por tempo indeterminado, de esquecer as asas. Escreve Olga Tokarczuk em Viagens que as suas raízes “são sempre superficiais e qualquer brisa é capaz de me arrancar a terra” (2019, p. 12). Este é o tempo de desenvolver a capacidade vegetal da permanência, de viajar em casa, sintonizar a memória dos voos, aeroportos, países calcorreados, do lar, da família, da vida que aguardam lá no outro lado do mundo. Continuamos anónimos atrás das máscaras que já são um prolongamento da nossa pele. Não nos reconhecemos na rua. Aprendemos a sorrir apenas com os olhos. E nesses sorrisos, nesses olhares, resta-nos plantar a vacina da esperança, abrir fronteiras ao novo, à reinvenção do nosso mundo a uma escala global. Tempo de ser flor de lótus a germinar no pântano de todos os medos e incertezas.



 


Dora Nunes Gago é doutorada em Literaturas Românicas Comparadas pela Universidade Nova de Lisboa (2007), mestre em Estudos Literários Comparados (Universidade Nova) e licenciada em Português-Francês pela Universidade de Évora. Lecciona desde 2012 na Universidade de Macau (China), primeiro como Professora Auxiliar e depois como Professora Associada de Literatura, tendo sido vice-directora e directora do Departamento de Português, para além de coordenadora da pós-graduação. Foi professora do ensino secundário, leitora do Instituto Camões na Universidade da República Oriental do Uruguai, investigadora de pós-doutoramento na Universidade de Aveiro e pós-doc visitante na Universidade de Massachusetts Amherst (Estados Unidos). É autora de publicações na área da Literatura Comparada, e também de poesia e ficção.

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