ALEGRIA
É preciso aprender
a alegria
nestes tempos de medo
afastamento e solidão
dar-lhe voz e rosto
olhos que brilhem por cima
das máscaras
e consigam sorrir
sem esforço
nem estudo
É preciso perceber
a alegria
aquela doçura silenciosa
e meiga
de quem conhece do peito
para a vida
a dor a tristeza a rejeição
e ainda assim
persiste em ver a beleza
do mundo
É preciso trajar
a alegria
esse vestido rodado
e plantado de flores
que transportamos
no corpo e na alma
e que dá luz e cor
a tudo
É preciso aceitar
a alegria
por mais que pareça mal
e soe inconveniente
a todos os que clamam
o fedor do esgoto
a céu aberto
derramado sobre
o mundo
É preciso viver
a alegria
que resiste no fundo
de cada um de nós
esse bichinho cego
à dor surdo
ao desamor
e que saboreia
o amor mais belo
e profundo
É preciso ser
a alegria
não desistir do que
nos faz feliz
mesmo que seja apenas
nos dez minutos
de intervalo
entre dor e dor
É nosso desígnio de vida
missão íntima pessoal
e transmissível
COZINHADO
cozinho a ansiedade
em lume brando
mantenho esta angústia
em banho-maria
águas tépidas de medo
contido
fermentação lenta
de tristeza enfarinhada
separo as dores gordurosas
das mais secas
e cozo-as em águas
separadas
os pânicos preparam-se
à parte
dos mais leves aos mais
negros
em momentos distintos
de confeção
e espero
... conseguir
não fugir
POEMA RESPIRATÓRIO
Ar-mar
Ar-poar
Ar-tilhar
Ar-rasar
Ar-repender
Ar-rebatar
Ar-repiar
Ar-der
Ar-ar
O meu coração
Falta-me o ar
--
Farta
Farta disto
Farta do medo
Farta de falar do medo
Farta de especular o medo
Farta de comer e vomitar o medo
Farta de fingir que não há medo
Farta de hiperbolizar o medo
Farta de sentir este medo
De respirar de existir
De viver sem sorrir
Deste persistir
Do medo
Em mim
É tempo de sair de dentro do medo
É tempo de perceber o momento
É tempo de percorrer o tempo
É tempo de encarar o medo
De pensar sem congelar
A capacidade de pensar
Para não sucumbir à chapada
Para ir além do medo-momento
Para caminhar sem medo do vento
Nascida no Monte Estoril, atualmente a residir em Elvas, é professora de Português e professora bibliotecária, profissão que exerce há quase 30 anos. Mãe de dois filhos sempre a crescer, fotografa por prazer, escreve por necessidade, lê porque a alma também precisa de oxigénio para respirar. A poesia tem lugar cativo nas suas preferências de leitura e escrita, desde que aprendeu a ler e escrever. A pandemia foi palco para intensa reflexão escrita.
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