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SARA F. COSTA




MARÇO DE 2020


lava bem

os músculos

do poema

desinfeta o sol

não toques

na cara

do vento

deixa

aquecer a vida

na criança

que dorme

por detrás

da máscara

mantém

a distância

de um metro

do medo.





SANITIZAÇÃO


trago uma máscara no útero

é uma máscara cosmopolita

num útero cosmopolita

afoguei-me mil vezes nas esquinas

da memória

para te molhar o dicionário

torcer os versos

engravidar uma única vez

de todos os homens que amei.

líbido de açucar a derivar da infância

bibliografia desidratada

trago um penso higiénico no útero

porque este livro vai nascer menstruado

vai trazer sangue nas pálpebras

vai voltar à nudez da guerra

cheirar fronteiras

para ficar de quarentena.

números indóceis

explodem em ecrãs

de disciplina,

normalização

vigilância

avaliação.

trago uma máscara

para a praga por nascer.

uma boca em ruínas

regaço de vertigens

o incêndio de uma galáxia remota

um vírus bateu as asas do outro lado do mundo

e milhares morreram na Europa.

mascaro a morte

dentro do útero.

máscara sanitária

para higienizar pensamentos.





PANDEMÓNIO


a mãe pousa o pensamento

na inclinação da sala

os seus verbos deambulam

pelas horas proibidas das ruas

a criança jorra em todas as direções

a sua existência secreta


como um sismo

também a criança se vai sentar

ao longo das manhãs fechadas

à espera que lhe cresçam

olhos de gaivota.





SOU VIDA-CASA


na contemplação do fogo:

incêndio permanente

que embala as portas

e não deixa ninguém entrar


portas e janelas adormecidas

ao longo das cidades

que se escondem

em quartos abandonados


peixes felizes

escorrem das torneiras

em direção à náusea

e a casa desagua

no sossego de estar viva


repousa na respiração

das paredes

até ao quisto

no chão das palavras.





O MENINO PROLONGA-SE ATÉ AO POETA


O menino prolonga-se até ao

poeta. É ele que vai desfiar o

fogo pela lenha. Observa a forma

como a sua solidão imita a batalha.


É sob o crepúsculo que as mulheres se

debruçam. Pernas abertas onde o

vento é pátria e é lua, dragão

invernal no centro da vila. Vem

auscultar os mancebos que

recortam a euforia das pedras,

mesmo que sejam árvores aquilo

que lhes cresce por dentro.


Primaveras feitas para se

perderem no longo caminho da

madrugada.


Crescem e, à medida que

crescem, ardem as árvores dentro dos

homens. São eles que ardem com a

lenha.


São as mulheres que se aquecem

na nudez macia de ser alimento que rasga e

que é vida e que é história infinita ao longo

do frio. O menino, dedo estendido, em

direção à poeta que é agora machados e

flechas no gemido último da multidão que

celebra. Beowulf nunca chega a matar o

dragão.


Cospe o Dragão e, quando ele

cospe, é o suor da noite que escorre à

boca dos homens. Ébrios, abraçam as

labaredas na tentativa vã de expulsar

a sombra do próprio corpo. É em festa

que se adia a morte.



 


TANATOPRAXIA DO AMOR


se no topo da montanha te retalharem a carne, deixa que a mercantilização da morte restitua os lábios que beijei, uma casa de sombra ao redor das mulheres que trazem ninhos nos ombros, sombras afiadas na perfuração dos versos, letras de músicas que são telhados onde

a própria chuva se abriga, edifícios inteiros dentro dos ossos, escorregamos a

conjugar os verbos porque as lágrimas são braços húmidos que nos

servem refrigerantes num fim de tarde na praia com roupa porque

o sol vive-nos no pescoço e a areia serve para construir

pirâmides onde enterramos bolas de ressentimento

embalsamado e dizemos ao nosso filho: vai, vai

jogar futebol porque és um deus após

a morte serás imortal.




 


Filhos que somos instalados em armários-bocas abertas em direção às pedras. Rostos brutos no vento parasita, brisa eterna na explicação do silêncio, sol irmão

das ervas flexíveis pontos de retorno se o retorno fores tu. Espalmas-me a derrota na memória abrupta, o medo esculpido

contra o sono. Desconheces as insónias crepusculares na minha claridade neurológica,

força aleatória na avidez dos corvos. Na tua marcha, o tempo arfa, recuperas o fôlego

mais lá para o fim do dia. Falas de pequenas gotas acumuladas junto

ao cérebro, pequenos quartos onde nos abandonas com

o cabelo persistente dos animais selvagens que rondam

as manhãs. Há um amor exausto na voz levantada,

estrelas presas na caverna para onde me devolves.

Queres ser lúcido na ausência lenta do telhado, o frio de quem se quer

longo no desmoronamento das aves que lhe alimentavam o sono.

Retalhos bruscos,

quase poeira pelo país que és, que não conheces, que te sabes demasiado trémulo. É o carro que emigra para onde tu não o conduzes, é o mundo que gira e que te faz sombra e que se gira e és sombra,

sopro volátil

onde já nem há sede. Conta-me, com um pouco de água

a densidade do mar com que esmagas o poema com que

vês pornografia com que me escovas o cabelo demasiado

aberto demasiado perdido nesse amor acutilado que me

cresce, que em mim plantaste como um

rugido.

Quem ladra aos meus ouvidos

todas as noites,

pai?

Que cão negro passa por cima da cama, cheira-me as raízes,

prolonga-se no esquecimento e cresce cresce cresce

como uma sombra hereditária no homem que viste desfazer-se quando lhe gritaram que tinha de ser mais homem,

mais ossos indigestos na reflexão podre do sol. Risos imundos soltos na calma nessa calma que não tens nessa que te espreita que te inocenta e torna

suspeito.



 


I


ao longo das casas

o rasto de nevoeiro

a enfeitar a dor

em redor

do amor


crescer é povoar um cisne

é árvore fecunda

a acumular a infância


ao longo dos dias

noites que são veias


é nessa intimidade

que me devolves os ossos


casas que são uma mulher

a dormir em espiral


uma sombra arqueada

no móvel da sala


estás e não estás

e quando não estou

abraço-te mais.






II


a mãe retira

as etiquetas

sabe que

ninguém nasce

com

etiqueta

há um planeta

inesgotável

na profundidade

de cada poro

uma pessoa inteira

não cabe dentro

de um nome.





III


a criança desarvorada

debruça-se perigosamente

pela verve

pilhéria necessária

às exigências da página

salmo ibérico

na reunião dos espectros

que pleiteiam entre si

a propriedade deste

ressurgimento em rio

ser-alífero pousado

na menstruação da mãe.





IV


com uma régua enorme

medir a distância

entre nós e as perguntas


nenhuma estrela amarga

é uma cidade


habitar lentamente cada imagem

puxar o corpo

para fora do ventre

puxar o ventre

para fora do corpo


medir a distância em sons

até às respostas desbotadas

nas ruas amargas das estrelas


concentrar-se

até ouvir o escuro

do ninho.




 

É formada em Estudos Chineses, Portugueses e Relações Internacionais. Publicou até à data cinco livros de poesia original nas editoras Âncora e Labirinto e uma antologia de poesia chinesa contemporânea por si selecionada e traduzida “Poética Não Oficial” (Editora Labirinto, 2020). Os seus textos têm vindo a ser publicados um pouco por todo o mundo. Tem recebido diversos prémios literários pela sua obra. É cronista no jornal Hoje Macau e membro da APWT (Asian-Pacific Writers and Translators). Em 2021 obteve uma Bolsa de Criação Literária do governo português (DGLAB).

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