MARÇO DE 2020
lava bem
os músculos
do poema
desinfeta o sol
não toques
na cara
do vento
deixa
aquecer a vida
na criança
que dorme
por detrás
da máscara
mantém
a distância
de um metro
do medo.
SANITIZAÇÃO
trago uma máscara no útero
é uma máscara cosmopolita
num útero cosmopolita
afoguei-me mil vezes nas esquinas
da memória
para te molhar o dicionário
torcer os versos
engravidar uma única vez
de todos os homens que amei.
líbido de açucar a derivar da infância
bibliografia desidratada
trago um penso higiénico no útero
porque este livro vai nascer menstruado
vai trazer sangue nas pálpebras
vai voltar à nudez da guerra
cheirar fronteiras
para ficar de quarentena.
números indóceis
explodem em ecrãs
de disciplina,
normalização
vigilância
avaliação.
trago uma máscara
para a praga por nascer.
uma boca em ruínas
regaço de vertigens
o incêndio de uma galáxia remota
um vírus bateu as asas do outro lado do mundo
e milhares morreram na Europa.
mascaro a morte
dentro do útero.
máscara sanitária
para higienizar pensamentos.
PANDEMÓNIO
a mãe pousa o pensamento
na inclinação da sala
os seus verbos deambulam
pelas horas proibidas das ruas
a criança jorra em todas as direções
a sua existência secreta
como um sismo
também a criança se vai sentar
ao longo das manhãs fechadas
à espera que lhe cresçam
olhos de gaivota.
SOU VIDA-CASA
na contemplação do fogo:
incêndio permanente
que embala as portas
e não deixa ninguém entrar
portas e janelas adormecidas
ao longo das cidades
que se escondem
em quartos abandonados
peixes felizes
escorrem das torneiras
em direção à náusea
e a casa desagua
no sossego de estar viva
repousa na respiração
das paredes
até ao quisto
no chão das palavras.
O MENINO PROLONGA-SE ATÉ AO POETA
O menino prolonga-se até ao
poeta. É ele que vai desfiar o
fogo pela lenha. Observa a forma
como a sua solidão imita a batalha.
É sob o crepúsculo que as mulheres se
debruçam. Pernas abertas onde o
vento é pátria e é lua, dragão
invernal no centro da vila. Vem
auscultar os mancebos que
recortam a euforia das pedras,
mesmo que sejam árvores aquilo
que lhes cresce por dentro.
Primaveras feitas para se
perderem no longo caminho da
madrugada.
Crescem e, à medida que
crescem, ardem as árvores dentro dos
homens. São eles que ardem com a
lenha.
São as mulheres que se aquecem
na nudez macia de ser alimento que rasga e
que é vida e que é história infinita ao longo
do frio. O menino, dedo estendido, em
direção à poeta que é agora machados e
flechas no gemido último da multidão que
celebra. Beowulf nunca chega a matar o
dragão.
Cospe o Dragão e, quando ele
cospe, é o suor da noite que escorre à
boca dos homens. Ébrios, abraçam as
labaredas na tentativa vã de expulsar
a sombra do próprio corpo. É em festa
que se adia a morte.
TANATOPRAXIA DO AMOR
se no topo da montanha te retalharem a carne, deixa que a mercantilização da morte restitua os lábios que beijei, uma casa de sombra ao redor das mulheres que trazem ninhos nos ombros, sombras afiadas na perfuração dos versos, letras de músicas que são telhados onde
a própria chuva se abriga, edifícios inteiros dentro dos ossos, escorregamos a
conjugar os verbos porque as lágrimas são braços húmidos que nos
servem refrigerantes num fim de tarde na praia com roupa porque
o sol vive-nos no pescoço e a areia serve para construir
pirâmides onde enterramos bolas de ressentimento
embalsamado e dizemos ao nosso filho: vai, vai
jogar futebol porque és um deus após
a morte serás imortal.
Filhos que somos instalados em armários-bocas abertas em direção às pedras. Rostos brutos no vento parasita, brisa eterna na explicação do silêncio, sol irmão
das ervas flexíveis pontos de retorno se o retorno fores tu. Espalmas-me a derrota na memória abrupta, o medo esculpido
contra o sono. Desconheces as insónias crepusculares na minha claridade neurológica,
força aleatória na avidez dos corvos. Na tua marcha, o tempo arfa, recuperas o fôlego
mais lá para o fim do dia. Falas de pequenas gotas acumuladas junto
ao cérebro, pequenos quartos onde nos abandonas com
o cabelo persistente dos animais selvagens que rondam
as manhãs. Há um amor exausto na voz levantada,
estrelas presas na caverna para onde me devolves.
Queres ser lúcido na ausência lenta do telhado, o frio de quem se quer
longo no desmoronamento das aves que lhe alimentavam o sono.
Retalhos bruscos,
quase poeira pelo país que és, que não conheces, que te sabes demasiado trémulo. É o carro que emigra para onde tu não o conduzes, é o mundo que gira e que te faz sombra e que se gira e és sombra,
sopro volátil
onde já nem há sede. Conta-me, com um pouco de água
a densidade do mar com que esmagas o poema com que
vês pornografia com que me escovas o cabelo demasiado
aberto demasiado perdido nesse amor acutilado que me
cresce, que em mim plantaste como um
rugido.
Quem ladra aos meus ouvidos
todas as noites,
pai?
Que cão negro passa por cima da cama, cheira-me as raízes,
prolonga-se no esquecimento e cresce cresce cresce
como uma sombra hereditária no homem que viste desfazer-se quando lhe gritaram que tinha de ser mais homem,
mais ossos indigestos na reflexão podre do sol. Risos imundos soltos na calma nessa calma que não tens nessa que te espreita que te inocenta e torna
suspeito.
I
ao longo das casas
o rasto de nevoeiro
a enfeitar a dor
em redor
do amor
crescer é povoar um cisne
é árvore fecunda
a acumular a infância
ao longo dos dias
noites que são veias
é nessa intimidade
que me devolves os ossos
casas que são uma mulher
a dormir em espiral
uma sombra arqueada
no móvel da sala
estás e não estás
e quando não estou
abraço-te mais.
II
a mãe retira
as etiquetas
sabe que
ninguém nasce
com
etiqueta
há um planeta
inesgotável
na profundidade
de cada poro
uma pessoa inteira
não cabe dentro
de um nome.
III
a criança desarvorada
debruça-se perigosamente
pela verve
pilhéria necessária
às exigências da página
salmo ibérico
na reunião dos espectros
que pleiteiam entre si
a propriedade deste
ressurgimento em rio
ser-alífero pousado
na menstruação da mãe.
IV
com uma régua enorme
medir a distância
entre nós e as perguntas
nenhuma estrela amarga
é uma cidade
habitar lentamente cada imagem
puxar o corpo
para fora do ventre
puxar o ventre
para fora do corpo
medir a distância em sons
até às respostas desbotadas
nas ruas amargas das estrelas
concentrar-se
até ouvir o escuro
do ninho.
É formada em Estudos Chineses, Portugueses e Relações Internacionais. Publicou até à data cinco livros de poesia original nas editoras Âncora e Labirinto e uma antologia de poesia chinesa contemporânea por si selecionada e traduzida “Poética Não Oficial” (Editora Labirinto, 2020). Os seus textos têm vindo a ser publicados um pouco por todo o mundo. Tem recebido diversos prémios literários pela sua obra. É cronista no jornal Hoje Macau e membro da APWT (Asian-Pacific Writers and Translators). Em 2021 obteve uma Bolsa de Criação Literária do governo português (DGLAB).
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