
mapasconfinamento
Renata Belmonte
Atualizado: 28 de fev.

FASCISMO
Para Erika Ramos
Naquela pele como pátria,
extensão devastada,
conheceu a guerra
Não esperavam resistência
Queriam que ela cruzasse braços,
pernas
Com núcleo à vista
Sorte de menina
(diziam)
era seu território ocupado
Em plena luz do dia
Mesmo assim,
rendida
continuava a lhe ser imputado
Tipo penal imaginário
Mas muito bem definido
Artigo primeiro:
mato
sua pele:
vasta vegetação antiga
Pena prestes a ser executada
Cruzes prontas para ela
Feitas de seus próprios braços,
pernas
Um corpo jaula
Enquanto alguém comentava
Melhor assim
Só chove lá fora
Em si mesma, restará protegida
Mas é justo no canto das estátuas
Neste país,
vasto cemitério de mulheres
Nas lápides sem inscrição
Que descobrimos o único epitáfio possível:
morrem de combustão
Aquelas que não ousam tempestades
GENOCÍDIO
Para Jorge Santiago
Qual idioma se fala no inferno?
- quis saber a criança
cuja mãe foi vítima
Os mortos da pandemia
ainda são capazes de pronunciar
a palavra amor?
E seus assassinos?
Nos hospitais,
nos cemitérios,
ou mesmo,
no paraíso,
existe algum setor de tradução
para o inominável,
para este homem
que foi escolhido?
O que, afinal, nos dirá
o dono das chaves,
o tal grande Salvador?
Como explicará sua seleção?
Como justificará porque
tantos não salvou?
A criança pergunta,
fabula,
mergulha na dúvida,
se afogando no vazio
Porque nunca houve pai
Tampouco avô
E estas respostas
não achou no livro
Do masculino,
apenas uma referência
aquele que o tio gostou
aquele que aparece na televisão,
aquele mesmo
o assassino
morto desde menino
que nunca aprendeu a dizer
a palavra amor
CONTÁGIO
Para Andréa Pato
Eu sinto que poderia ser uma destas mulheres
que, em nome do pai, perdem a alegria
que, em nome do filho, destroem o feminino
E, por fim, quando chega a noite
Terminam o sinal da cruz
Rogando pelo espírito santo,
enquanto pulam no precipício
Autora de Mundos de uma noite só (Faria e Silva, 2020), Femininamente (Prêmio Braskem de Literatura, 2003), O que não pode ser (Prêmio Arte e Cultura Banco Capital, 2006) e Vestígios da Senhorita B (P55, 2009). Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), ela é também advogada.