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Rafael Azevedo

Atualizado: 15 de jul. de 2023




MARLOW E ISHMAEL, AMIGOS DE LONGA DATA



No início da minha adolescência, era comum me esconder no quintal extenso, como uma tentativa de me invisibilizar diante de algum caos passageiro. Hoje, posso interpretar isso como minha primeira fuga, que se intensificou na fase adulta, entre livros e urgências, ao me sentir num mutismo de pedra esquecida.


Se a casa agitada se tornava sufocante ou as brincadeiras na rua mais desinteressantes ainda, eu, encolhido, sumia entre as folhagens fartas de um jambeiro, curiosa árvore amazônica, e lá ficava imaginando mil e uma coisas, mordendo o jambo, a fruta vermelha filha da minha árvore-esconderijo, e sorvia o suco que oscilava entre o doce e o cítrico. A sua flor, de um róseo-arrebol, circundava o chão, e a tonalidade parecia me deixar ébrio, os olhos sonolentos se esvaíam para o lugar do fascínio, como se sonhasse muitas vidas em pouco tempo. Entretanto, retorcido entre galhos e até mesmo invisível entre as folhagens verdes da copa da árvore, encontrava algum vazio interior, não sei se um tédio de um recém-saído da casa da infância ou falta do que fazer.


Na época, já tinha certa aproximação com a pintura, tentando duplicar Miró, Modigliani ou Tarsila do Amaral. Mas não foi a cópia da arte que tentei imitar, e sim, sobre um papel róseo, riscos aleatórios que, de alguma forma, já existiam na minha memória, o que naquele instante identifiquei como um mapa. Sem saber, meu mapa-múndi, fascinante na infância de Charles Marlow, ficou guardado dentro de uma obra de capa avermelhada, desbotada pelos dias, que, tempos depois, encontrei ao folhear alguns livros empoeirados. E o meu desenho estava justamente dentro de uma edição antiga do Coração das trevas.


Curioso, resolvi ler o livro, que me trouxe uma lucidez imensa, marcando em mim, como uma linha imaginária divisora de águas, territórios existenciais extremamente imprecisos, que não me fizeram mais ser o mesmo. Como entender o horror do colonialismo ou a sede de riqueza de um homem sombrio obcecado pelo poder? Questões surgiam. O meu sumiço na casa não era notado, e, entre as folhas, a leitura do livro e a experiência inquieta de Marlow me instigaram a procurar outras obras que envolvessem deslocamentos. Então conheci Moby Dick, e, sobretudo, Ishmael, quem me dizia que se distanciar da terra firme e navegar e visitar outras águas eram um jeito de afastar a melancolia e regular a circulação. O próprio Ishmael não esperava que testemunharia um homem estranhamente preso a suas profundas fúrias.


Passei um ano para ler os dois livros, não por falta de tempo, mas por estar diante de obras que falavam para mim, levando-me a profundezas espirituais jamais experimentadas, e a consequências que foram também experimentar algumas angústias, que passaram a fazer parte do meu cotidiano, como espanto, ao provar uma fuga do próprio corpo e se tornar outro. Ali, na secreta estadia, ganhei dois amigos, que me mostraram, quase como um desvelamento, um mundo estranho: sangue, dor, crueldade, cobiça e o avesso da perfeição humana.


Hoje, não subo mais em árvores, até porque mudei de cidade e cresci. E uso meu escritório, um banco de praça ou uma biblioteca para leituras centradas. Mas, quando escrevo, olho para uma árvore que só existe para mim, e sou lançado a uma zona de memória poética que não está na forma estática de uma escultura centenária, mas em uma eterna remodelagem que se pinta de um róseo-arrebol. Depois me recolho, para desenhar personagens com traços e pontilhismos, como se sempre estivesse voltando ao instante da adolescência, aos ruídos da casa, aos traços pré-gramaticais, à descoberta do espanto, depois ao reencontro com Marlow e Ishmael, que me apontaram territórios inéditos. Lembrar deles é eleger uma amizade de longa data. E tudo me vem com um sabor cítrico que dá água na boca.


 


ENTRE TRÊS DIMENSÕES DO SER



FOI


O desejo de viver o que já se foi,

Este verbo que se dobrou às costas,

deitado em cama de tijolos cortantes, que não doíam mais

ao mesmo tempo guardava a nostalgia da escrita

que sangrava estados convulsos:

habitar no verbo era elevar a covardia ao topo da árvore gigante sem folhas

lembrança

era se esconder dos sons, das fúrias, dos gritos que batiam à porta

era ir a ele e se inclinar como um ser às avessas



É


Aqui, agora,

a penetração nas horas

não lubrificadas

por algum vislumbre de misericórdia,

as prateleiras cheias de letras combinadas distinguem-me de ti?

somente este presente preenche o ego dos abrigados,

fartos entre pães, frutas e vinho

o tédio preenche as casas de almas vazias

decoradas pelo ouro, prata e bronze,

enquanto os desnorteados caminham

das ruas silenciosas a um precipício existencial.

Aqui, agora, é, as unhas rasgam as paredes

um lugar arranhado, um braço arranhado pelo animal solto nos sentidos,

é, teu lado em pé diante da porta, uma das cabeças da quimera

olha a ponta úmida da minha língua contorcendo o tempo

desesperado pela pureza da ignorância

e o que resta então é o caos,

não há mais cabelos a arrancar, as telas coloridas tornam-se o abrigo celestial

de uma vila horrorizada pelos corpos deixados diante da mesa

em cinzas, pássaro de fogo morto,

a casa envolta de hoje esconde um som sombrio



SERÁ


Depois de tudo,

a luz lisa vai entrar pelas

fendas da casa,

e a tormenta vai cessar

e a carne

a acalorar o lado de pedra fria.

Sei que voltaremos a sorrir

como pessoas que vivem entre

oscilações, desgraças e silêncios rezados,

direi para um amigo: olhe, ainda sobrou alguma coisa de nós,

Amor, ou insistência, mesmo a ganância ou uma lasca de luz.

Sei que é difícil renunciar à mentira deste corpo

Mas basta rasgar

o que há de presente e deixar algum deus entrar

como linguagem e persistência

porque

se eu temer tudo isso,

serei destruído completamente, amigo,

antes da destruição completa,

e será em vão todo o pessimismo.

Mas quero ir,

e deixar as coisas acontecerem e acontecer nelas,

sem pressa,

olhar, entender, discordar,

neste espaço de tempo que existimos,

sei que alguma coisa entra

nos olhos, diz bem-vindo à casa que somos nós

e sai

como uma noite em sonhos livres,

e tudo nos move como uno,

repartidos em diferenças como linguagem silenciada por precisão.



 


POR DENTRO DE RIOS VOADORES



Amanhece cinza, Adriano se apressa para pegar o barco, precisa atravessar o rio para vender as frutas e o peixe apanhados na véspera. Ele desce as escadas da ponte antiga, senta-se no banco, inclina-se, liga o motor que tremula a água, espanta os peixes, alvoroça os pássaros, balança as folhas das árvores e ressona langoroso nos ouvidos de Laíse.


Ela abre os olhos, levanta-se, senta-se, esfrega os restos de medo impregnados no sonho, desce da rede para olhar lá fora. O pai já se afasta do porto, dá somente para gritar agudo um até logo. Ele não escuta quem é, mas olha o rio e, assombrado, pensa que vem de dentro das águas, pode ser uma mulher-peixe, uma mãe molhada, qualquer coisa que habite suas lembranças ancestrais. Ele se benze. Os frágeis raios do sol nascente iluminam as faces sonolentas da menina, que retorna para a rede, tentando descansar mais um pouco e sonhar um mundo menos pesado. Edimara, sua mãe, chama a filha para o café, a menina sente o aroma preto movimentar sua fome e despertá-la para a vida.


“Não sei se o teu pai vai poder trazer o teu material da escola,” diz Edimara. “A cidade está toda fechada desde a semana passada.”


“Por que está tudo fechado, mãe?”, pergunta a menina, mordendo o pão.


A mãe pensa, ensaia uma forma de explicar a sua filha o que está acontecendo. Como dizer a uma criança de 9 anos o porquê das pessoas estarem presas em casa? Como encontrar a símile da reclusão, qualquer parente do confinamento, primo-irmão do impedimento? Nem ela, no fundo, saberia descobrir qualquer aproximação, algo que pudesse resvalar no entendimento, por isso franze a testa, não pela pergunta difícil, mas por ser confrontada com a própria ignorância.


Então, num hiato, murmura:


“Prisão.”


A menina não entende. Prisão? O que significa a palavra no momento? Não sabe ainda o real sentido. Vasculha na memória algum indício que a leve pelas mãos para a porta do esclarecimento. Parece difícil. Encontra a imagem de seu tio, José Miguel, que certa vez tinha roubado na cidade e fora encarcerado. Mas o que uma coisa tem a ver com outra? Estranho!, ela diz. Pela maneira que sua mãe pronunciou, não deve ser coisa boa.


Depois de morder o pão, se apressa para correr para a ponte. As águas crescem velozes, se correr pelo quintal, pode ser perigoso demais. Vou esperar o papai, avisa a sua mãe. Pega em cima da estante um caderno do ano passado, um lápis quase no fim e um pedacinho de borracha. Corre para a ponte, os seus pés tremem as tábuas podres, chega no limite, se senta, balança as perninhas, olha para o céu e quase sonha, volta-se para a cidade, olha tanto que se cansa. E o pai não vem para o almoço.


No fim da tarde, antes de anoitecer, ela repete os mesmos atos. Sentada, apoia o caderno nas pernas, folheai-o, se amua por não ter encontrado uma única folha em branco. Encontra uma única parte limpa, as costas cinza da capa, e, na dureza, rabisca uma casa, um céu, um sol, um rio. Há, no desenho, algo que lhe causa certo estranhamento, porque parece que se vê na imagem, como se houvesse um espelho que simulasse um medo e uma vontade de ir embora, de fugir da fome que a cerca, dos lamentos e explosões de raivas do pai ao gritar com a mãe, da expressão pálida da mãe quando se silencia diante da arrogância e do temor.


Mesmo pequena, é interessante saber que compreende algum incômodo interior, no interior da floresta há o interior universal de uma dor humana, é interessante saber que entende a violência enredada na distância entre os verbos ser e estar. Se a cidade está deserta, ela deve estar atordoada, mas se a cidade soubesse que aqui sempre estivemos confinados, a ferida seria menos doída, murmura. Não sabe dizer como chegou a esse raciocínio, de fato ela não tem a noção do terror que paira pelas nações, mas uma melancolia umedece seus olhos. Como fugir desse estado? Como partir sem deixar rastros de procura e desespero? Sem saber, presa a esses pensamentos, aprisiona-se em uma amargura precoce à sua identidade e a um solilóquio tardio, vindos de uma voz abafada. Laíse olha o rio, se imagina um peixe, conhece pela primeira vez a sua profundeza. Vê barcos apodrecidos, navios de ferro, carcaças de animais, alguns ossos humanos atirados no esquecimento. Mas é tudo turvo demais. Retorna à superfície. Olha o céu, uma corrente de vento leva o caderno, para salvá-lo ela se atira num redemoinho, faz o movimento de uma serpente verde, agora nada para outros rios, agora nada para os rios voadores, com correntezas catastróficas que destruiriam qualquer fome, qualquer solidão imprudente, qualquer aprisionamento. Dos rios voadores, pode olhar sua casa, a floresta, a cidade e um pedaço do oceano atlântico, pode compreender uma existência minúscula diante do mundo que se estende a um horizonte sem fim. Entenderá este salto? Compreenderá este mergulho no espaço e o desafio do tempo? Chamará de mergulho ou voo? Terá ela a essência de um peixe-voador? Sim, está prestes a entender essas questões, a compreender como se libertará desse abandono milenar, de um confinamento imposto pelos séculos, pela história dos homens, de como um grito que carrega a dor é um som que morre antes de cumprir seu destino metafísico de reivindicar o mergulho nas águas do céu. É quando, subitamente, ela começa a se fragmentar, o rosto se estilhaça e, em milhões de pedaços luminosos em forma de água, como mil cacos de espelhos iluminando seu mergulho rebelde no ar, começa a cair aos pedaços, em repetições de gotas, em lascas que não remetem a um humano, e ela então chove. Na queda livre, a menina experimenta, pela primeira vez, o desejo de morte.


Ainda suspensa, ela abre os olhos, está deitada na ponte, anoitece, o caderno tinha caído no rio, começaria a lamentar a perda, mas escuta o som do motor ao longe. Seu pai retorna para casa. Ela olha o horizonte escurecido, chuvas finas pesam os cabelos e escorrem pelas faces. No fundo, não está feliz pelo retorno do pai, porque em seu rosto, outra vez, veria a máscara do lamento ou o assombro da impaciência, o que ela deseja é ter somente um novo caderno, para voltar a garatujar espelhos, imitações geográficas de uma alma aos pedaços, contornar sombras de rios alados, e desenhar a si mesma, um peixe-voador, neste terrível tempo de solidão.



 

Nasceu no Pará, Norte do Brasil, Amazônia. Tem mestrado em Estudos Literários (2019), é pesquisador e cursa doutorado na Universidade Federal do Pará, na cidade de Belém, onde reside. Publicou o conto Lavadeira de rio (Selo Off Flip, 2021), e estreia na ficção com o romance Ecos no coração da terra (Kotter Editorial, 2021). A Amazônia, um lugar belo e repleto de contradições históricas e humanas, é uma das sementes de sua ficção.

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