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Rafael Azevedo

Atualizado: 28 de fev. de 2022





ENTRE TRÊS DIMENSÕES DO SER



FOI


O desejo de viver o que já se foi,

Este verbo que se dobrou às costas,

deitado em cama de tijolos cortantes, que não doíam mais

ao mesmo tempo guardava a nostalgia da escrita

que sangrava estados convulsos:

habitar no verbo era elevar a covardia ao topo da árvore gigante sem folhas

lembrança

era se esconder dos sons, das fúrias, dos gritos que batiam à porta

era ir a ele e se inclinar como um ser às avessas



É


Aqui, agora,

a penetração nas horas

não lubrificadas

por algum vislumbre de misericórdia,

as prateleiras cheias de letras combinadas distinguem-me de ti?

somente este presente preenche o ego dos abrigados,

fartos entre pães, frutas e vinho

o tédio preenche as casas de almas vazias

decoradas pelo ouro, prata e bronze,

enquanto os desnorteados caminham

das ruas silenciosas a um precipício existencial.

Aqui, agora, é, as unhas rasgam as paredes

um lugar arranhado, um braço arranhado pelo animal solto nos sentidos,

é, teu lado em pé diante da porta, uma das cabeças da quimera

olha a ponta úmida da minha língua contorcendo o tempo

desesperado pela pureza da ignorância

e o que resta então é o caos,

não há mais cabelos a arrancar, as telas coloridas tornam-se o abrigo celestial

de uma vila horrorizada pelos corpos deixados diante da mesa

em cinzas, pássaro de fogo morto,

a casa envolta de hoje esconde um som sombrio



SERÁ


Depois de tudo,

a luz lisa vai entrar pelas

fendas da casa,

e a tormenta vai cessar

e a carne

a acalorar o lado de pedra fria.

Sei que voltaremos a sorrir

como pessoas que vivem entre

oscilações, desgraças e silêncios rezados,

direi para um amigo: olhe, ainda sobrou alguma coisa de nós,

Amor, ou insistência, mesmo a ganância ou uma lasca de luz.

Sei que é difícil renunciar à mentira deste corpo

Mas basta rasgar

o que há de presente e deixar algum deus entrar

como linguagem e persistência

porque

se eu temer tudo isso,

serei destruído completamente, amigo,

antes da destruição completa,

e será em vão todo o pessimismo.

Mas quero ir,

e deixar as coisas acontecerem e acontecer nelas,

sem pressa,

olhar, entender, discordar,

neste espaço de tempo que existimos,

sei que alguma coisa entra

nos olhos, diz bem-vindo à casa que somos nós

e sai

como uma noite em sonhos livres,

e tudo nos move como uno,

repartidos em diferenças como linguagem silenciada por precisão.



 


POR DENTRO DE RIOS VOADORES



Amanhece cinza, Adriano se apressa para pegar o barco, precisa atravessar o rio para vender as frutas e o peixe apanhados na véspera. Ele desce as escadas da ponte antiga, senta-se no banco, inclina-se, liga o motor que tremula a água, espanta os peixes, alvoroça os pássaros, balança as folhas das árvores e ressona langoroso nos ouvidos de Laíse.


Ela abre os olhos, levanta-se, senta-se, esfrega os restos de medo impregnados no sonho, desce da rede para olhar lá fora. O pai já se afasta do porto, dá somente para gritar agudo um até logo. Ele não escuta quem é, mas olha o rio e, assombrado, pensa que vem de dentro das águas, pode ser uma mulher-peixe, uma mãe molhada, qualquer coisa que habite suas lembranças ancestrais. Ele se benze. Os frágeis raios do sol nascente iluminam as faces sonolentas da menina, que retorna para a rede, tentando descansar mais um pouco e sonhar um mundo menos pesado. Edimara, sua mãe, chama a filha para o café, a menina sente o aroma preto movimentar sua fome e despertá-la para a vida.


“Não sei se o teu pai vai poder trazer o teu material da escola,” diz Edimara. “A cidade está toda fechada desde a semana passada.”


“Por que está tudo fechado, mãe?”, pergunta a menina, mordendo o pão.


A mãe pensa, ensaia uma forma de explicar a sua filha o que está acontecendo. Como dizer a uma criança de 9 anos o porquê das pessoas estarem presas em casa? Como encontrar a símile da reclusão, qualquer parente do confinamento, primo-irmão do impedimento? Nem ela, no fundo, saberia descobrir qualquer aproximação, algo que pudesse resvalar no entendimento, por isso franze a testa, não pela pergunta difícil, mas por ser confrontada com a própria ignorância.


Então, num hiato, murmura:


“Prisão.”


A menina não entende. Prisão? O que significa a palavra no momento? Não sabe ainda o real sentido. Vasculha na memória algum indício que a leve pelas mãos para a porta do esclarecimento. Parece difícil. Encontra a imagem de seu tio, José Miguel, que certa vez tinha roubado na cidade e fora encarcerado. Mas o que uma coisa tem a ver com outra? Estranho!, ela diz. Pela maneira que sua mãe pronunciou, não deve ser coisa boa.


Depois de morder o pão, se apressa para correr para a ponte. As águas crescem velozes, se correr pelo quintal, pode ser perigoso demais. Vou esperar o papai, avisa a sua mãe. Pega em cima da estante um caderno do ano passado, um lápis quase no fim e um pedacinho de borracha. Corre para a ponte, os seus pés tremem as tábuas podres, chega no limite, se senta, balança as perninhas, olha para o céu e quase sonha, volta-se para a cidade, olha tanto que se cansa. E o pai não vem para o almoço.


No fim da tarde, antes de anoitecer, ela repete os mesmos atos. Sentada, apoia o caderno nas pernas, folheai-o, se amua por não ter encontrado uma única folha em branco. Encontra uma única parte limpa, as costas cinza da capa, e, na dureza, rabisca uma casa, um céu, um sol, um rio. Há, no desenho, algo que lhe causa certo estranhamento, porque parece que se vê na imagem, como se houvesse um espelho que simulasse um medo e uma vontade de ir embora, de fugir da fome que a cerca, dos lamentos e explosões de raivas do pai ao gritar com a mãe, da expressão pálida da mãe quando se silencia diante da arrogância e do temor.


Mesmo pequena, é interessante saber que compreende algum incômodo interior, no interior da floresta há o interior universal de uma dor humana, é interessante saber que entende a violência enredada na distância entre os verbos ser e estar. Se a cidade está deserta, ela deve estar atordoada, mas se a cidade soubesse que aqui sempre estivemos confinados, a ferida seria menos doída, murmura. Não sabe dizer como chegou a esse raciocínio, de fato ela não tem a noção do terror que paira pelas nações, mas uma melancolia umedece seus olhos. Como fugir desse estado? Como partir sem deixar rastros de procura e desespero? Sem saber, presa a esses pensamentos, aprisiona-se em uma amargura precoce à sua identidade e a um solilóquio tardio, vindos de uma voz abafada. Laíse olha o rio, se imagina um peixe, conhece pela primeira vez a sua profundeza. Vê barcos apodrecidos, navios de ferro, carcaças de animais, alguns ossos humanos atirados no esquecimento. Mas é tudo turvo demais. Retorna à superfície. Olha o céu, uma corrente de vento leva o caderno, para salvá-lo ela se atira num redemoinho, faz o movimento de uma serpente verde, agora nada para outros rios, agora nada para os rios voadores, com correntezas catastróficas que destruiriam qualquer fome, qualquer solidão imprudente, qualquer aprisionamento. Dos rios voadores, pode olhar sua casa, a floresta, a cidade e um pedaço do oceano atlântico, pode compreender uma existência minúscula diante do mundo que se estende a um horizonte sem fim. Entenderá este salto? Compreenderá este mergulho no espaço e o desafio do tempo? Chamará de mergulho ou voo? Terá ela a essência de um peixe-voador? Sim, está prestes a entender essas questões, a compreender como se libertará desse abandono milenar, de um confinamento imposto pelos séculos, pela história dos homens, de como um grito que carrega a dor é um som que morre antes de cumprir seu destino metafísico de reivindicar o mergulho nas águas do céu. É quando, subitamente, ela começa a se fragmentar, o rosto se estilhaça e, em milhões de pedaços luminosos em forma de água, como mil cacos de espelhos iluminando seu mergulho rebelde no ar, começa a cair aos pedaços, em repetições de gotas, em lascas que não remetem a um humano, e ela então chove. Na queda livre, a menina experimenta, pela primeira vez, o desejo de morte.


Ainda suspensa, ela abre os olhos, está deitada na ponte, anoitece, o caderno tinha caído no rio, começaria a lamentar a perda, mas escuta o som do motor ao longe. Seu pai retorna para casa. Ela olha o horizonte escurecido, chuvas finas pesam os cabelos e escorrem pelas faces. No fundo, não está feliz pelo retorno do pai, porque em seu rosto, outra vez, veria a máscara do lamento ou o assombro da impaciência, o que ela deseja é ter somente um novo caderno, para voltar a garatujar espelhos, imitações geográficas de uma alma aos pedaços, contornar sombras de rios alados, e desenhar a si mesma, um peixe-voador, neste terrível tempo de solidão.



 

Nasceu no Pará, Norte do Brasil, Amazônia. Tem mestrado em Estudos Literários (2019), é pesquisador e cursa doutorado na Universidade Federal do Pará, na cidade de Belém, onde reside. Publicou o conto Lavadeira de rio (Selo Off Flip, 2021), e estreia na ficção com o romance Ecos no coração da terra (Kotter Editorial, 2021). A Amazônia, um lugar belo e repleto de contradições históricas e humanas, é uma das sementes de sua ficção.

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