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Gabriela Silva





TUDO ARDE


Eu sinto tudo arder

Dentro e fora de mim

Coração, pulmões e fígado

Florestas, cidades


Meus pés queimam

Ao tocar o chão em brasa

Dói, mas eu seguro firme

A única mão que me ofereceste


Com a outra ajeitas

O cabelo, o bigode

Apalpas os bolsos

A procura de algo


Há uma poeira a encobrir

O mundo ardente

Sob um cansado sol

Desfeito em tons de laranja e rosa


Eu poderia dizer que te amo

Penso antes de fechar os olhos

Para proteger os sonhos

Das chamas e da fumaça


Num incêndio salvamos pouco

Alguns livros, discos, uma roupa

A própria pele

E toda umidade possível


Descobri contigo a água

A última maçã

O resto de um verso

Deixado sobre a mesa


Grita comigo?

Ninguém vai ouvir mesmo

O fogo consumiu o que havia

De mais antigo desde o Genesis





A PURIFICAÇÃO DOS DIAS


Se tudo fosse sonho

Ilusão intransferível

Eu tocaria a tua mão

Estendida sobre a cama


Teus dedos longos

Cansados de procurar coisas

Nas gavetas da casa

Repletas de notas, papéis, parafusos


Ou de indicar as linhas nos livros

Guiando os olhos

Para terminar a leitura

Iniciada há dias, meses, anos


Teu rabisco está em alguma página

Em que a personagem descobre

Um segredo, resolve um enigma,

Acha uma foto, redime um pecado


As mesmas mãos

Acolhem a xícara quente de café

Trazem até teus lábios mornos

Ainda indispostos a qualquer palavra


Ao longo do dia, o cheiro dos temperos

Do limão, canela, ou manjericão

Impregna a tua pele

Deixando o rastro do que nos alimentou


Meus braços espreitariam os teus

Quando arrefece a casa

E os encontros não são mais furtivos

Pela sala, cozinha, banheiro


É noite e nossos dedos descansam

Do medo que temos de tocar tudo

E só nos resta tatear um ao outro

Purificados da ausência do mundo





SÓIS


Quantos sóis!

Quantos sóis aqui!

Aquecendo nossa pele

Dançando entre os móveis

Iluminando dobras e rugas

Ajudando a cicatrizar arranhões


Quantos sóis, meu amor

A me lembrar que tenho fome, sede

Durante a vigília de uma vida

Exaurida, cansada de esperar

Disfarçando com uma boa história

Manchando as toalhas com gotas de vinho


Quantos sóis, quantos sóis

Orbitam em torno da mesa da sala

Ao mesmo tempo que os verbos

acontecem em gerúndios intermináveis

E estamos sempre a nos movimentarmos

para gastar o dia


Quantos sóis ardem, disparam luz

Sobre nossos corpos que tentam

Encaixar anatomias,

Provocando sensações que já conhecemos

Mas queremos repetir, desfazer, fazer

Até os lençóis ficarem tortos, enredados, rotos


Quantos sóis, meu amor

A desvendar a nudez que aprendemos

Ser natural e enfadonha

Diferente das cascas das frutas

Das capas dos livros

Das velhas cortinas do quarto


Os sóis continuam aqui

A me acompanhar na cama repleta de mornidão

Ouço o som do chuveiro, sei que a água

Cai sobre tua cabeça, ombros, sexo, pernas

Escorre entre os dedos dos pés, misturada a espuma do sabonete


Lembro de Roma num dia de chuva

Das estátuas dos deuses

que moram nas praças, ruas, vielas

E molham seus corpos de pedra

Sem poder fazer nada contra a umidade

Que entra em fissuras mínimas e antigas


Há tantos sóis aqui, meu amor

E o meu desejo de que retornes

Com gotículas de água na pele

como se fossem as flores

de um campo de sonho

repleto de insetos caminhantes e inquietos


Há tantos sóis aqui a me entorpecer

com este calor mortiço

evocação da necessidade do frescor

de saliva e do ar que vem das nossas bocas

que não tem forças para quebrar paredes

roer concretos e ferros


Desses sóis vem tudo que nos aquece

queima, arde e alimenta

estamos perto demais dessa chama

desbotando nossas retinas

invalidando ações propositais

de esquecimento e rudez


Quero acordar

mas há sóis demais aqui

pesam, fecham meus olhos

só posso procurar teu braço

acomodar minha cabeça

e num murmúrio dizer que te amo



 

Natural de São Paulo, formada em Letras, especialista em Literatura Brasileira (2003), Formação de Leitores (2005), mestre (2009) e doutora (2013) em Teoria da Literatura pela PUCRS. É professora de literatura e escrita criativa nos gêneros poético e narrativo. Tem pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no Centro de Estudos Comparatistas (novas identidades de escrita portuguesas) e na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões (romance de Almeida Faria). Tem artigos e ensaios publicados sobre escrita ficcional, escrita criativa e literatura portuguesa. É colaboradora do Jornal Rascunho. Participa de diversos grupos de pesquisa, entre eles o Figuras da Ficção, coordenado pelo Prof. Dr. Carlos Reis, da Universidade de Coimbra. É autora de Ainda é céu, livro de poemas (Editora Patuá), e tem poemas publicados em antologias.

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