TUDO ARDE
Eu sinto tudo arder
Dentro e fora de mim
Coração, pulmões e fígado
Florestas, cidades
Meus pés queimam
Ao tocar o chão em brasa
Dói, mas eu seguro firme
A única mão que me ofereceste
Com a outra ajeitas
O cabelo, o bigode
Apalpas os bolsos
A procura de algo
Há uma poeira a encobrir
O mundo ardente
Sob um cansado sol
Desfeito em tons de laranja e rosa
Eu poderia dizer que te amo
Penso antes de fechar os olhos
Para proteger os sonhos
Das chamas e da fumaça
Num incêndio salvamos pouco
Alguns livros, discos, uma roupa
A própria pele
E toda umidade possível
Descobri contigo a água
A última maçã
O resto de um verso
Deixado sobre a mesa
Grita comigo?
Ninguém vai ouvir mesmo
O fogo consumiu o que havia
De mais antigo desde o Genesis
A PURIFICAÇÃO DOS DIAS
Se tudo fosse sonho
Ilusão intransferível
Eu tocaria a tua mão
Estendida sobre a cama
Teus dedos longos
Cansados de procurar coisas
Nas gavetas da casa
Repletas de notas, papéis, parafusos
Ou de indicar as linhas nos livros
Guiando os olhos
Para terminar a leitura
Iniciada há dias, meses, anos
Teu rabisco está em alguma página
Em que a personagem descobre
Um segredo, resolve um enigma,
Acha uma foto, redime um pecado
As mesmas mãos
Acolhem a xícara quente de café
Trazem até teus lábios mornos
Ainda indispostos a qualquer palavra
Ao longo do dia, o cheiro dos temperos
Do limão, canela, ou manjericão
Impregna a tua pele
Deixando o rastro do que nos alimentou
Meus braços espreitariam os teus
Quando arrefece a casa
E os encontros não são mais furtivos
Pela sala, cozinha, banheiro
É noite e nossos dedos descansam
Do medo que temos de tocar tudo
E só nos resta tatear um ao outro
Purificados da ausência do mundo
SÓIS
Quantos sóis!
Quantos sóis aqui!
Aquecendo nossa pele
Dançando entre os móveis
Iluminando dobras e rugas
Ajudando a cicatrizar arranhões
Quantos sóis, meu amor
A me lembrar que tenho fome, sede
Durante a vigília de uma vida
Exaurida, cansada de esperar
Disfarçando com uma boa história
Manchando as toalhas com gotas de vinho
Quantos sóis, quantos sóis
Orbitam em torno da mesa da sala
Ao mesmo tempo que os verbos
acontecem em gerúndios intermináveis
E estamos sempre a nos movimentarmos
para gastar o dia
Quantos sóis ardem, disparam luz
Sobre nossos corpos que tentam
Encaixar anatomias,
Provocando sensações que já conhecemos
Mas queremos repetir, desfazer, fazer
Até os lençóis ficarem tortos, enredados, rotos
Quantos sóis, meu amor
A desvendar a nudez que aprendemos
Ser natural e enfadonha
Diferente das cascas das frutas
Das capas dos livros
Das velhas cortinas do quarto
Os sóis continuam aqui
A me acompanhar na cama repleta de mornidão
Ouço o som do chuveiro, sei que a água
Cai sobre tua cabeça, ombros, sexo, pernas
Escorre entre os dedos dos pés, misturada a espuma do sabonete
Lembro de Roma num dia de chuva
Das estátuas dos deuses
que moram nas praças, ruas, vielas
E molham seus corpos de pedra
Sem poder fazer nada contra a umidade
Que entra em fissuras mínimas e antigas
Há tantos sóis aqui, meu amor
E o meu desejo de que retornes
Com gotículas de água na pele
como se fossem as flores
de um campo de sonho
repleto de insetos caminhantes e inquietos
Há tantos sóis aqui a me entorpecer
com este calor mortiço
evocação da necessidade do frescor
de saliva e do ar que vem das nossas bocas
que não tem forças para quebrar paredes
roer concretos e ferros
Desses sóis vem tudo que nos aquece
queima, arde e alimenta
estamos perto demais dessa chama
desbotando nossas retinas
invalidando ações propositais
de esquecimento e rudez
Quero acordar
mas há sóis demais aqui
pesam, fecham meus olhos
só posso procurar teu braço
acomodar minha cabeça
e num murmúrio dizer que te amo
Natural de São Paulo, formada em Letras, especialista em Literatura Brasileira (2003), Formação de Leitores (2005), mestre (2009) e doutora (2013) em Teoria da Literatura pela PUCRS. É professora de literatura e escrita criativa nos gêneros poético e narrativo. Tem pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no Centro de Estudos Comparatistas (novas identidades de escrita portuguesas) e na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões (romance de Almeida Faria). Tem artigos e ensaios publicados sobre escrita ficcional, escrita criativa e literatura portuguesa. É colaboradora do Jornal Rascunho. Participa de diversos grupos de pesquisa, entre eles o Figuras da Ficção, coordenado pelo Prof. Dr. Carlos Reis, da Universidade de Coimbra. É autora de Ainda é céu, livro de poemas (Editora Patuá), e tem poemas publicados em antologias.
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