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Domingos Lobo

Atualizado: 21 de out. de 2022





DESAMPARO


Uma cidade velha a tropeçar nas rugas, a contar os dias pelos nódulos de dedos trémulos, um corpo inseguro a agitar-se na manhã brumosa, a ferrugem a crestar tudo.

Um azedo na boca a transitar para o indiferente das conversas

deslarga-me

a enorme fila e todos, os velhos, com um papel azul na mão

é para a vacina

que era para essa coisa da covides e nós no desamparo da rua, as pernas a tropeçar no vento

as consoantes a declinarem na dentadura rala, nas fibras do bife nos molares.

Bengalas e pernas que já não querem sair do sofá, empurradas à pressa para a carrinha da Junta

deslargue-me

que se negam ao espanto da manhã, de qualquer manhã, mesmo esta morrinhenta e sisuda

e ficamos aqui, à chuva, ao frio, com ossos e dedos incapazes na sombrinha

que se negam ao espaço que existe para além das cortinas e das sombras que fazem nas paredes em dias de sol. A pantalha sempre ligada

deslargue-me

um arrepio na pele a suspender, num exercício instável, articulações carcomidas pela geada

e agora isto, um papel azul da Junta, um pavilhão enorme e umas batas brancas simpáticas, a preencherem-nos um papel com quadradinhos

idade, nome, profissão

semi-morta, se é isso profissão, é a que tenho. Se já não vivo, senhora, e ainda a oiço a si, estou nesse limbo, cá e lá, é conforme os dias

É para a vacina

É para o que diz no papel azul, que eu não sei ler, e mesmo que soubesse, não enxergo

a cara a desbotar num cinza de morte anunciada

e que dizer do medo, da sopa que arrefece no tabuleiro

deslargue-me

A vacina é da Moderna. Tome nota

Se soubesse, tomava, assim, é-me indiferente.

Tem de ficar ali sentada 30 minutos.

Há 3 anos que não faço outra coisa, senhora. Ficar sentada a ver bonecos na pantalha


Ela a despir-se, a luz frouxa do candeeiro a petróleo, ele indeciso porque ela ainda inteira. Ele já instruído em lupanares bolorentos, convívio com putas velhas, com a escola toda, as putas e elas sabidas de seduções, formas de contornar a timidez, que ele ávido, seduzido por aquele universo de pernas nuas, e mamas a saírem dos corpetes. O cheiro a vinagre a sair-lhes das axilas, a cama com lençóis grudados de outros corpos.

Aprendi, dizia o moinante, muito nessas noites.

Ela ali, sob a luz indecisa do candeeiro, a pedir-lhe

Desata-me os cordões

sentia o seu sexo em fúria, um desatino, e ela era meias, cinta, a camisa de dormir

Vou lavar os dentes, já venho

o seu corpo a tremer ele a tentar domar um sexo impaciente

a agarrá-la

deslarga-me

a entornar a sopa nos lençóis lavados, ainda o cheiro a perfume neles, o quarto limpo, impecável

a empregada

Está tudo bem, senhor António

A tirar-lhe o soutien, a apalpar-lhe os seios nus, húmidos, duros, a tirar-lhe a camisa de noite com a polpa de uns dedos nervosos, a deitá-la na cama

Queres mais sopa. Não entendi se queria, adormeceu com a tigela entre os dedos.


a empregada

Amanhã vai tomar a segunda dose da vacina

amanhã, ainda há amanhã e é cada vez mais difícil lá chegar, tocar o seu mágico arrebol.

O meu homem não chegou à vacina. Tudo nos tarda.

Aquele corpo, o meu corpo de menina numa cama que é nossa, feita à medida dos nossos corpos, à medida do nosso desejo, dos anos que virão. Lençóis brancos, a brilhar na luz frouxa. O vento, por fim, a apagar o candeeiro, a esconder a mancha vermelha que os tingia.

Os morcegos a fazerem morada no telhado do estábulo.

deslarga-me


A baba a escorrer-lhe de uma boca desapossada de tudo, até de palavras, só consoantes mudas, indecifráveis, entre a língua e as gengivas mirradas que nem já a placa nelas se acolhe e aconchega

A propriedade a crescer, milho, cevada, uma corte de maçãs, algumas nêsperas, pêra rocha. E muito gado bovino, caprino, queijos e filhos a encherem a casa de gritos e de vida.

Vem para a vacina

Tenho um papel azul, não vê

Preencha este papel

Não sei escrever

O seu nome

Custódia

Casada

Viúva

Já foi vacinada

Tenho um papel azul, este, e vim na carrinha da Junta

a televisão a debitar barbaridades, que os velhos são tontos e já não pensam, qualquer alacridade serve, a estas horas. Dá pouco share. Público pouco exigente, mais para lá do que para cá. Baloiçam no imponderável ou na roleta russa.

Dava-me muito trabalho, o meu homem. Muito carente e eu

Deslarga-me

sem compreender. Nunca o entendi. Aprendeu com as putas, dizia, que aquilo eram ermos e, na vila, muita sotaina a pôr grades nas entrepernas. Lugar onde o pecado se acende, diziam, a boca do corpo. Os rapazes iam a essas casas iniciar-se. Que nós a recato, vigiadas pelos pais e pelos irmãos, não fosse o diabo pôr-nos pedras no caminho. Era tropeço certo. Que a cabeça em sonhos, desvarios.

Não ria tanto, senhora, que a agulha entra de esguelha.

Já nem a sopa conseguia engolir, falhava-lhe a colher, agarrava com força trémula a tigela

ajuda-me, e ela

Deslarga-me

indiferente, a olhar os bonecos na pantalha.

Os filhos longe, impedidos de vir. Agora há fronteiras para tudo, muros a erguerem-se por todo o lado. Deu a loucura nos homens. Esta febre. Nem ao enterro do pai os deixaram vir. Luto virtual, os palermas. Vai acabar o mundo, é o que vos digo.

Tire o casaco e a blusa.

Porque se incomodam connosco, senhora. Estou semi-morta. O ano passado ainda cá estava o meu marido, ainda me apetecia viver. Agora

Morreu de quê, o seu marido

Da covides, senhora, essa praga que veio para nos encurtar os dias e os afectos. Para que temos braços

Veio-lhe a tosse, a dor no peito funda, insuportável, os pulmões a falharem e a febre a soltar-se

Doeu

já não sinto nada, senhora. Plano

A televisão a debitar coisas insalubres, música que já era velha no meu tempo, versos imbecis, como se os velhos fossem tontos, desprovidos de sentido crítico.

Eis o que me dói, mais que os ossos e esta pele gáspea que os suporta. Que futuro terão os meus netos, ou já não há futuro

Doeu

O quê

A vacina

Nem senti

O que me dói, senhora, é ter a mioleira em contraciclo, mais jovem

(muito mais, valha-me a santa)

do que este corpo aos pedaços, colado a cuspo, sobretudo as pernas

deslargue-me


As putas, aprendi tudo com elas, ou penso que aprendi. As manhas, o desenrasca, a arte de sobreviver no lodo. Levei tudo para o colo da minha Custódia, parco espólio. Mas aguentámo-nos cinquenta anos.

Quem és tu

A baba a crescer-lhe ao canto da boca, a boca deformada com os lábios para dentro, comidos pelas gengivas, como as palavras, as poucas que conseguia articular

Deslarga-me

com as vogais perdidas na saliva e as consoantes submergidas num líquido verde, a mergulhar fundo nas dores de um corpo semi-morto.


Os morcegos saíam agora do forro do estábulo, invadiam o quarto, apagavam o candeeiro e traziam a noite para dentro dos lençóis.

Ainda lá estava a mancha vermelha, ou seriam os olhos sangrando dos morcegos projectados no branco.


 

3 POEMAS DOS DIAS FECHADOS



O CERZIR DO MURO


algo de grades

de cerzido granito

algo de sufoco de medo de interdito

algo de bosque

ou ferida

dedos perscrutando o nevoeiro

ou apenas noite

algo de obscuro dor aguda

de vácuo

de mordaça

algo enigmático a queimar-nos o ar

ou a claridade ao longe a comer-nos os olhos

o definhar do sangue

em veias calcinadas

palavras esquivas

punhos aos murros no silêncio


Seixal, 29 de Abril de 2020




QUARENTENA



há um tempo lento que desce das cortinas

dia baço pesado irrespirável

uma música indistinta algures

noutra janela

neste tempo suspenso que nos rouba o tempo de viver

a claridade

só precisamos respirar olhar o dia os olhos da vizinha

muito opacos

as máscaras que passam taciturnas

antes

antes de quê?

do sobressalto

o tempo era inimigo

um relógio que apetecia quebrar

hoje

que dia é hoje?

o instante absoluto

o inimigo é um enigma

um magma invisível

o inumano receio do outro

oiço alguém tossir no andar de baixo

fecho-me no quarto como se o quarto

fosse a última trincheira

num campo devastado pelo absurdo


amanhã que rosto nos daremos

quando a manhã de novo nos tocar?


Seixal, 15 de Abril de 2020





O CORAÇÃO DA ALEGRIA



já não sei correr pelos lameiros das águas

já não sei descalçar este astro inquieto

este sangue dos fenos que me afunda e retrai

já não reconheço o vórtice do sol lavando a névoa dos pinheiros

nem os cheiros das casas transportados no vento

as farpas do inverno

fria lua

tingindo a solidão das camas

cal e cinza e mulheres nuas, imaginárias traves do desejo,

de vida breve

à espera

eis a raiz os espelhos do silêncio

já não sei das palavras

adubo ou lastro vinho agreste calado de desterros

cerro de interditos

temor de ter esquecido os caminhos os rumores selvagens

os lábios abertos ao que virá, o beijo inaugural dos lumes

o meu rebanho perdido, transumância ou invisível fome,

raiva quanto baste neste divórcio de mim, terra infértil

nas leiras do Inverno a recolher o fogo

os enigmas do teu rosto sobre as águas

a rugosidade fantástica das sombras laje de recessos

estuo num tempo opaco a tricotar a chuva

é o bárbaro rumor das cinzas

que me acolhe o lastro melancólico do improvável beijo

perdi os mapas da mágica viagem

e não sei navegar nem domar os ventos

ceguei e é enorme a noite

luzeiro na bruma não reconheço o chão a janela o poço

os teus passos no quarto a memória frágil do teu corpo no escuro

matéria de mundos inabitados casa de pó e astros

perdi os dias altos serenos o inteiro coração da alegria



 

Andou pelos liceus de Lisboa, rebeldia mansa dos anos 1960; pelas Faculdades de Direito e Letras; pelo Conservatório Nacional. Pendura-se num mestrado em Administração e Economia Cultural, que utilizou pouco. Tem 22 livros publicados (poesia, teatro, ficção, ensaio) e outros em gestação; vários prémios literários e medalhas para polir o ego.

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