ÍCARO
Há tempos estou para fazer um poema sobre a palavra antilírica
E faço uso de máscaras e distanciamento, essas coisas que não combinam
Com viver plenamente, com desfrutar um paraíso convivido
Mas só consigo pensar na sabedoria das coisas que esperam
Na sabedoria das gentes que sabem
Que a Terra gira e parece que o Sol se põe
Que a Terra gira e parece que o Sol nasce
Que há dias
E dias.
O MEZ DA GRIPPE
Na terça-feira saí nas ruas de minha cidade
Estava dentro de um carro/usava máscara/e tinha medo
O céu era azul sem nuvens
Minhas filhas comigo/no banco de trás
Íamos a um laboratório/ tomar vacina
Mas não contra covid/não contra o voto do motorista
Todo cuidado era pouco/álcool gel na bolsa
E tudo seria um relato antilírico não fosse o céu
Não fosse a memória de cada esquina
Não fossem as ruas me lembrando do paraíso
Que não é um lugar
É um tempo.
POEMA DE OCASIÃO 1
Quero registrar que mil caíram à minha direita
Mil à minha esquerda
Outros mil à minha frente/ atrás de mim mais dez mil
E que eu posso cair a qualquer momento
Cercados pela morte nem os colibris de poetas
Voam/ Nem a minha implicância com a palavra
Poetisa
Nada
Repõe o mar e o seu sal
Nada nos fará esquecer que em dado momento
A morte entrou pelas frestas, pelas urnas
Funerárias
E marcou o passo a passo
Deste país
Triste país
Cujas carpideiras estendem as mãos nas ruas
Preocupadas com a fome, com o filho, com o teto
Ocupadas demais para chorar este luto.
POEMA DE OCASIÃO 2
Na linha
Da mão
Apareceu um
País
A cigana
Não enganou
Ninguém
Minha linha
Do tempo
Parece um
Obituário
Quem sobra
Lê.
POEMA DE OCASIÃO 3
O pesadelo coletivo
Apresenta suas cenas
Fragmentárias
Os mascarados se escondem
Enquanto rostos nus gritam vivas
À morte
Suas bocas estão visíveis
Seus pulmões carregam falências
Pedintes invadem
As ruas
Não os bancos
Os bancos conservam portas giratórias
Os hospitais lotados
O pesadelo salta para outro cenário
Música eletrônica
666 pessoas dançam, comem e bebem numa festa
Enquanto o presidente imita um homem que
Não consegue respirar.
Poeta, nascida e residente em Belo Horizonte, Adriane publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prémio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019) e Eva-proto-poeta (ed. Caos & Letras, 2020).
Adriane captou, com sensibilidade, o triste país que o Brasil representa hoje.
Como boa poeta, deixa umaréstia de esperança.