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Sonia Palma

Atualizado: 28 de fev. de 2022






VAZIO


A sacola esquecida no canto cheirava azedo. Um queijo ali esperava o pão, já quase mofo. Um odor começava a sufocar aquele minúsculo cômodo, sujo, fétido, de camadas de suor misturado ao cheiro do carpete velho. O sabonete seco, deixado no canto da pequena pia do quarto, já rachava por falta de uso; e a escova de dentes, há tanto esquecida, repousava caída num canto. Um achado de bom preço aquele quarto. Mas era mais parecido com um sótão, de quase nenhuma luz natural. Casa grande, antiga, linda aos olhos que olham de fora. Seu quarto era como uma extensão do terceiro andar. Muita sorte, pensava, ter chegado poucos dias antes do lockdown, conseguindo rapidamente um lugar para ficar. Precavida, fez mercado para muito tempo, mas agora quase já não comia. Há semanas seu corpo padecia, sem fome, sem energia. Olhava o teto até seus olhos secarem e sua cabeça rodava, doía muito. Nem deu tempo para fazer amizades, e já não havia contato entre as pessoas da casa. Um acordo e todos deveriam se isolar. Saía dali muito de vez em quando, para suas necessidades no banheiro. Estava tão mal que já não sabia contar quantas horas, dias, ou se eram meses, confinada ali naquele quadrado. Onde estão as luzes de Londres? Onde se perderam os sonhos de uma vida melhor? Do conforto planejado para sua família? Dos museus e teatros? De viagens e amigos? Se sentia sozinha, abandonada pela vida, perdida, confusa. Estava tudo tão insuportavelmente vazio dentro dela, ocupada demais em sua tristeza para contatar família e amigos. Mas sua saúde física estava resguardada: completamente isolada, não se contaminaria. Não deveria se preocupar, não é mesmo? Se levanta da cama com dificuldade, o corpo dói, os ossos doem. A vida dói! Dois passos, suficientes para tropeçar em coisas espalhadas, esquecidas, sujando o carpete. Não suporta mais. Precisa sair dali. Precisa ver o céu, sentir o vento, respirar ar fresco. Se ajoelha para olhar pela janela encostada no chão. A janela é muito pequena, mas o suficiente para ver as pessoas e o rio lá embaixo. Tamanho suficiente para abri-la e sentir a brisa fresca em seu rosto. Está tudo tão vazio, mas tudo parece tão calmo, pensa. Só algumas aves andam nas ruas e calçadas. Seu olhar percorre as ruas vazias. Pensa em seu próprio vazio, um vazio que grita dentro dela, que a consome; mas o vazio das ruas é diferente, é calmo. Um vazio como o azul do céu, que a preenche. Sem o movimento dos barcos, as águas do rio estão serenas. Lembranças e pensamentos passam por sua mente como um filme. Um gemido de lamento, de perdão e gratidão, um desejo veemente de mudar tudo aquilo. E depois de tanto tempo confinado, seu corpo, que já era quase árvore, ali plantado, inerte, se arrasta como lesma, lentamente, pela abertura da janela. E, respirando fundo, se lança num voo de braços abertos, preenchendo seu vazio no azul do céu.


Nuneaton, 20.08.2021



 

Brasileira, professora/pesquisadora e vive em Nuneaton, Inglaterra. Cursou Letras, Filosofia e Mestrado com ênfase em Educação Ambiental. Além da organização de livros e revistas, de cunho acadêmico e literário, publicou os livros: Uma Cartografia do Imaginário nas Sendas de Manoel de Barros e Gaston Bachelard (2015); Diesel Went To Live In The Garden (2014, bilingue, Por/Ingl); As Descobertas de Amana nas Matas de Utiariti (2017, bilingue, Port/Ingl). Atualmente se dedica à pesquisa e escrita de seu primeiro romance, ELO.

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