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Susana Piedade

Atualizado: 21 de fev. de 2022





DOIS MINUTOS E MEIO ATÉ PASSAR O COMBOIO


Faltam dois minutos e meio. Parece pouco, mas é suficiente para te dizer tudo o que quero enquanto espero pelo comboio. Um bilhete de três linhas faria o mesmo efeito, mas não deixei nada, a não ser o que pertencia àquela casa, àquela outra vida que só foi minha por engano.


O Pedro não para de saltitar de um lado para o outro e fazer perguntas na sua voz pequenina. Seguro-lhe a mão, seguro-me, digo-lhe que falta pouco. Está na idade dos porquês, torna as distâncias e as esperas sempre mais longas, intermináveis, mas hoje não falou em ti e talvez não sinta muito a tua falta. Quiseste-o por capricho, porque te diziam que estava na altura, planeavas dar um neto aos teus pais e mostrar-nos como bibelôs num móvel, mas uma família não se faz de aparências.


Da última vez que aqui estive, aconteceu uma desgraça; não te contei porque entre nós as palavras são raras, escolhidas a dedo, nunca sei quando se tornam gatilhos. Uma mulher que estava ao meu lado, mais ou menos da minha idade, trinta e poucos anos, atirou-se para a frente do comboio. Ficou toda a gente atazanada e aos gritos, com a visão do corpo despedaçado na via férrea. Só eu permaneci imóvel e calada, sem desviar os olhos do cenário.


Estava a tornar-me imune à violência.


Ocorreu-me isso e outras coisas mais.


Talvez aquela mulher tivesse tido os seus dois minutos e meio para refletir no que ia fazer, ou não, sabe-se lá, o desespero tem mão de ferro e, por vezes, leva-nos de arrasto.


Sabes o que pensei, em primeiro lugar? Pelo menos, a desgraçada não deve ter tido tempo de se arrepender. E depois lembrei-me de que podia ter sido eu no lugar dela. Se calhar fui eu e já cá não estou.


Se me tornei insensível ao sofrimento, em boa parte a ti o devo, meu amor. Não me custa chamar-te assim, habituei-me a isso e a muito mais; o que me incomoda é saber que a palavra não tem nada lá dentro, oca como uma noz podre, e as palavras são demasiado valiosas para as desperdiçarmos ou fazermos mau uso delas. Não fosse eu escritora para saber disso.


A escrita sempre foi uma companheira exigente, traz as suas angústias e alegrias e faz-me penar até à última palavra, mas nunca me falhou. As personagens que moram na minha cabeça não são meras abstrações, figuras de papel, mas pessoas com vidas reais a quem me apego, que reconheceria se nos cruzássemos na rua e que perduram para lá do fim da história.


Quando morrer, quero que me levem livros em vez de flores.


Conheci-te precisamente numa livraria. Vagueava ao longo das prateleiras, de cesto na mão, a apontar autores e títulos que tinha na mira quando, por distração, me cortaste a passagem, indeciso entre dois livros. Confesso que tenho um certo encantamento por leitores; é um dos meus pecados. Não tenho por hábito meter conversa com estranhos, mas os livros eram tão bons que sugeri que levasses os dois antes que as edições esgotassem, e aquele acaso literário passou a um café e depois a encontros frequentes. Agora percebo que o teu interesse pelos livros é tão estético quanto a família; tens uma montanha deles a enfeitar as estantes, mas nunca te vi ler nenhum.


Quando casámos, começaste por reclamar das horas que eu passava ao computador, entre a escrita e os artigos que pagavam contas. Alegavas que era um desperdício de tempo esfalfar-me tanto por uns tostões, que mais valia cuidar de ti e da casa, e não tardou a que o meu trabalho se tornasse um passatempo inútil aos teus olhos. Mas os sinais agravaram-se sobretudo depois de o Pedro nascer. Nunca tive uma folga. Aborreceste-te da paternidade como de uma brincadeira que perdera a graça, os teus pais trabalhavam, e não confiavas em empregadas porque eram ladras, ou incompetentes, ou as duas coisas. Na minha ignorância ou boa-vontade, o que, às vezes, é sinónimo de estupidez, atribuí as tuas mudanças de humor ao desgaste, às rotinas, às tarefas que sem cerimónia empurravas para mim. Precisei de mais para abrir os olhos. O primeiro insulto pôs-me logo num pranto, porque os trambolhões das hormonas, os nervos e a falta de sono me faziam desabar em lágrimas por tudo e por nada. Atrás desse insulto vieram outros, correste-os todos; porque o bebé te acordava a meio da noite, ou não suportavas os vómitos e as fraldas, ou porque eu fedia a leite e a suor, e só usava cuecas que chegavam ao umbigo. Um dia, o miúdo encheu-se de cólicas e eu não tive tempo para um duche, uma pausa, parecia um robô a embalá-lo de um lado para o outro até o conseguir deitar no berço. Em vez de me consolares, trovejaste sobre a barafunda em que encontraste a casa, mais a falta do jantar na mesa, e espetaste-me uma bofetada que me fez rodar como um pião contra a parede. E ali fiquei, sem perceber o que se estava a passar, até que me seguraste pelo braço e me deste uma valente sova. O Pedro pegara no milagre do sono e fiz de tudo para não o acordar. Deixei-me calcar até já não sentir o peso dos teus pés. Quando foste atrás de culpas e perdão, tranquei-me na casa de banho.


Vivo trancada desde então.


Confinada numa casa grande, mas demasiado pequena para te evitar, olhando o mundo por detrás de grades invisíveis, como se uma pandemia tivesse alastrado pelo mundo, semeando desgraças, medos e inseguranças. Aprisionada na minha vida minúscula e solitária, em que os dias se sucedem sempre iguais, sem saber se é terça se quinta. Os dias só se contam pela palma da tua mão.


Tu és o vírus, a doença, a gaiola.


E serás a minha morte em pouco tempo.


Tiraste-me o que pudeste: a autoestima, as pessoas; até os livros deixas à míngua nas prateleiras da estante como se me contaminassem a mente. Quando os vejo trancados como veneno, dá-me vontade de esmigalhar aquelas portas de vidro com os próprios punhos e libertá-los do teu desprezo. Mas aproveitei as sestas do Pedro para escrever, sempre com medo de te ouvir chegar, documentos guardados com nomes de receitas de bacalhau e pomadas contra assaduras, e o disco escondido na gaveta das fraldas, à cautela.


Se tivesse família, uma casa para onde corresse nos momentos de aflição, braços que se abrissem sem ter de prestar explicações, seria diferente. Mas só me restam pedras de mármore enegrecida onde deixo flores e segredos. A história não é bonita, mas as verdadeiras raramente o são. O meu pai não era mau, nunca nos bateu nem levantou a voz, mas cedeu aos demónios que trazia na cabeça – e ninguém sabe bem como entram, quanto mais como se tiram de lá. Certo dia, saltou para a linha do comboio e levou o meu irmão com ele; eu só não fui junto porque estava na escola. A minha mãe sobreviveu ao desgosto mais morta do que viva, até sucumbir numa cama de hospital onde o coração lhe cobrou as dívidas. Não cheguei a tempo de a ver, de lhe aquecer as mãos entre as minhas e dizer que estava tudo bem, que poderia partir sossegada, que é o que achamos que os moribundos querem ouvir ou a única parvoíce que nos ocorre naquele instante. Nunca houve despedidas, só um vazio impossível de atenuar.


Os amigos foram-se afastando, porque pressentiam a tensão e nunca se sentiam bem-vindos. Recebia-os com camadas de roupa e maquilhagem que não encobriam as marcas profundas, só na tua ausência e sempre de olho na porta, porque te enciumavas até do homem do talho. Certa vez, estava a fazer um chá para duas amigas quando o Pedro, que ainda mal falava, me puxou pelo casaco e chamou:


– Puta.


Puta com todas as letras.


Fiquei uns segundos a olhar para ele, com o palavrão e as lágrimas entalados na garganta.


– Chiu, isso não se diz, filho – repreendi-o num tom pastoso, passando-lhe a mão pela cabeça, embaraçada, com a desculpa de que ele deveria ter ouvido aquilo na televisão ou na rua, quando vivíamos enfiados num casulo. E a justificação pegou, porque toda a gente sabe que as crianças têm tendência a repetir o que não devem.


Envergonhava-me contar-lhes a verdade, ouvi-las dizer, com a mesma indignação que impunha a mim própria, que era uma estupidez ficar contigo e que já devia ter ido à esquadra, mesmo sabendo que muitas destas queixas caem em saco roto e que quando soa o alarme já alguém morreu. Além disso, o amor ainda era uma palavra completa, e o medo e a culpa tomaram conta de mim.


Os encontros reduziram-se a telefonemas esporádicos onde escuto o que me contam e falo de tudo menos do que importa. Os abraços evaporaram-se e talvez só lhes demos o devido valor quando os perdemos. Os teus são de gelo ou de fogo, magoam de todas as formas, e não consigo agarrar o Pedro por muito tempo. Vivo uma solidão inédita, fria, cortante, tão diferente daquele isolamento visceral da escrita.


Às vezes descemos ao inferno e julgamos que ficamos lá para sempre.


Mas nenhum mal é eterno, exceto a morte.


Quando hoje saíste para trabalhar, eu já tinha tudo pronto.


Liguei a uma amiga, que estranhou a hora e o gesto, tão desabituada de ouvir a minha voz. Senti-me capaz de despejar uma tonelada de desabafos, mas não precisei de muitos. Tinha duas malas feitas e escondidas no quarto das visitas que só recebia o pó e um arejo ao fim de semana. Peguei na carteira, na sacola de trabalho, e dei um abraço apertado ao Pedro, que não teve hipótese de se escapar.


Faltavam dois minutos e meio para passar o comboio quando aqui chegámos, mas agora já se ouvem as campainhas, o aviso nos altifalantes e o zunzum dos passageiros que formigam de um lado para o outro, com sacos e maletas, entre conversas apressadas, beijos e abraços, na mecânica dos seus dias, e é como se o mundo, que me pareceu ter parado como um relógio, de repente voltasse a pulsar.


Da última vez que aqui estive, saltei para os carris. Pelo menos, idealizei a cena ao pormenor, assisti à minha própria morte sangrenta sem que isso me tivesse impressionado.


Estava imune.


O Pedro olha para mim e pergunta-me para onde vamos.


– Vamos embora.


– E demora muito a chegar?


– Um bocadinho.


Sabendo que daqui a nada me voltará a perguntar o mesmo.


Sigo em direção ao comboio que se aproxima a galope. Equilibro-me na borda da plataforma, desvio o olhar para os trilhos, seguro o Pedro pela mão. E, nesse instante, desaparecemos de vista. Ninguém se apercebe, não há perplexidade nem algazarra, nem a linha cortada para remover o que sobra dos corpos estraçalhados. Não há nada de insólito para ver. Vamos sentados lado a lado, de mão dada, espreitando pela janela o que deixamos para trás.


Prossigo a viagem, sozinha, no refúgio da escrita onde sempre estive, com os dedos saltitando nas teclas do computador, uma pilha de livros na mesa de trabalho e uma fiada de estantes sem portas. A vida sem grades corre ao seu ritmo, com tantas histórias por contar. Esta acaba aqui, cheguei à última página, à última palavra. Mas ainda trago na cabeça a tua voz, o choro do Pedro a meio da noite, e ia jurar que quando levo a mão ao rosto sinto uma espécie de dor, embora não se vejam marcas a olho nu. A maioria não se vê.


* * *


Cerca de um ano mais tarde, uma mulher entra numa livraria com o olhar carregado de sombras e medos, e vai palmilhando os corredores da loja, com o coração desarmado, até encontrar o livro que uma amiga lhe recomendou: Dois minutos e meio até passar o comboio. Abre-o sem ler a sinopse, que conhece de cor, não fosse a história da sua vida, e vai direita à primeira página. Saciada com o início, sorri timidamente, abraçada ao livro. Dirige-se à caixa e sai à pressa, porque está na hora. E, afinal, dois minutos e meio chegam bem para o que tem a dizer.

 

Susana Piedade nasceu no Porto. É mestre em Ciências da Comunicação, com especialização em marketing e publicidade. A paixão pela escrita vem de longe e veio para ficar. Estreou-se na literatura com o romance As Histórias Que não Se Contam, finalista do Prémio Leya em 2015 e publicado no ano seguinte nesta mesma coleção. O Lugar das Coisas Perdidas, lançado em julho de 2020, é o seu segundo livro de ficção.

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