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Ricardo Figueira

Atualizado: 28 de fev. de 2022




A MÁQUINA



Um português, homem solitário, carente e com perturbações de ansiedade, vive fechado num apartamento nos arredores de Paris onde passa os dias a construir uma estranha máquina de função desconhecida. Em dias que se repetem e se assemelham, entre a construção do engenho e as múltiplas distrações que encontra, reflete sobre a vida, a situação do mundo, os tapetes voadores, a relação entre os tubarões da Groenlândia e a existência de Deus e uma mulher que deixou em Lisboa e sonha reencontrar.


Através do ecrã do televisor tem visões, por vezes enternecedoras, outras vezes perturbadoras e mesmo aterrorizantes, que afetam o desenrolar das tarefas do seu dia-a-dia. Nas constantes viagens, quer pelo interior da mente, quer pelas várias divisões da casa, perde-se cada vez mais nas suas próprias fantasias.



Há quantos dias ando a construir a máquina? Quatro ou cinco? Seis? Sei que me tem entretido e é melhor do que passar o dia frente ao computador a ver vídeos de combates de sumo no YouTube. Para esta porca, vou precisar da chave número 11. Onde está? Abro gavetas, fecho gavetas, acendo mais um cigarro, encontro a puta da chave numa gaveta onde não devia estar. Aperto a puta da porca.


Às vezes, o ar nesta divisão torna-se irrespirável. Cheira a serradura, ferro e tabaco. O bom disto é que me distraio tanto que nem dou por o tempo passar. Almocei? Estou com fome, que horas são? Quatro e meia da tarde. Pausa. Cozinha. Um copo de tinto e uma sandes de presunto, mas não é uma sandes de presunto qualquer, é à minha maneira, com requintes. Tomate cortado às rodelas, uma pitada de sal, umas folhas do manjericão que tenho aqui no parapeito, é uma espécie de animal de estimação que rego todos os dias e com quem converso de vez em quando – um fio de azeite, que isso de usar manteiga é coisa de bárbaros, e só depois as duas fatias de presunto.


Abro a janela da cozinha e encho os pulmões. Não é o ar o campo, mas é mais puro que o do quarto das ferramentas, que não tem janelas e fede. Sempre areja. A paisagem é feia, cinzenta. Vê-se a Torre Eiffel lá muito ao longe, como um sonho que está ao alcance da vista, mas não dos nossos braços. Está calor. Que raio, anos e anos a fio de primaveras nojentinhas e, desta vez, que está bom tempo a sério, não se pode apanhar ar como deve ser.


Toma o fósforo, filho, toma o fósforo. Toma, que é melhor para a tua cabecinha, como o médico mandou e ficas mais concentrado, devaneias menos.




Sofá. Sala. Estico-me. TV. A pivô do telejornal diz que chovem pétalas de rosa em Lisboa. O repórter faz um direto do Rossio debaixo de um dilúvio de pétalas e diz que sim, é verdade, é um fenómeno inédito e inexplicável. A pivô surpreende-o e aparece também no Rossio, os dois beijam-se apaixonadamente e rodopiam sob esta chuva bizarra e romântica que continua a cair do céu. Queres casar comigo? Sim, sim, sim! Os transeuntes aplaudem, o homem das castanhas aplaude efusivamente e assobia com os dedos na boca, toda a Lisboa se ergue a bater palmas.


Era bom, era. Tenho uma imaginação demasiado fértil. As notícias são sobre o vírus, que mais? Está um doutor de óculos e gravata, via skype, uma estante de livros atrás, a falar. Diz que é um mito urbano, isso do surto acabar dentro de semanas por causa do calor.


Eu dou-lhe razão. Afinal, em Guayaquil faz sempre calor, a linha do Equador passa lá e, por isso mesmo, o país se chama Equador – e morrem aos milhares. No outro dia, vi um vídeo de um cadáver a ser queimado na rua porque ninguém o vinha buscar e começava a apodrecer.


Mortos são matéria humana, são corpos, pedaços de músculo agarrados a ossos e órgãos que deixaram de funcionar, carne que derrete com o fogo e se evapora, sobe ao céu em espirais de fumo no asfalto escaldante de Guayaquil. Corpos em sacos amontoados à porta da morgue de um hospital de Belém do Pará. Mortos são gente, sim. Números também. Estatísticas. Quase 2500 nos Estados Unidos, ontem. Mais de 600 no Brasil. É a contabilidade do dia esparramada numa linda tabela, muito organizadinha, que discrimina os mortos do dia, os mortos acumulados, os casos acumulados, as novas infeções e as mortes e casos por milhão de habitantes, que consulto todos os dias em worldometers.info/coronavirus, entre dois combates de sumo.


Vejo e revejo os embates do Takanohana contra o Akebono, no início da década de 2000. Os dois últimos grandes yokozunas. Vou-me entretendo com isto. É uma vida solitária, não muito diferente da que tinha antes desta coisa do vírus, sempre fui um eremita. Agora já não preciso de fingir. Aprecio cada vez mais o facto de estar o tempo todo na toca e só sair para ir buscar comida, como os ratos.


Gosto de estar comigo próprio, com os meus pensamentos e fantasias. Às vezes farto-me e começo a pensar na minha Rapunzel, vem-me à memória a imagem de nós os dois a caminhar, de mãos dadas, sob os milhares de pórticos encarnados do Fushimi Inari de Quioto, até chegarmos à deusa-raposa-de-pedra. Estávamos de mãos dadas, de certeza? Talvez a imagem mental que tenho daquele momento seja mais romântica do que a realidade. Na verdade, estava a praguejar por não termos ido mais cedo e haver já demasiados turistas àquela hora.


Chamo-lhe Rapunzel desde o início do confinamento, porque é assim que a imagino, fechada no seu sétimo andar no Cacém, debruçada na janela da marquise, a deitar os longos cabelos loiros para que eu trepe até ela e a vá resgatar desta solidão, qual príncipe dos contos de fadas, vestido de fato-macaco e armado com uma chave de porcas número 15, capaz de matar qualquer dragão. Ou qualquer vírus.


Os voos continuam parados e não se sabe quando voltam a funcionar. Ir de carro? Impossível com as fronteiras fechadas. Mas não há restrições em relação aos tapetes voadores, ou há? Sobre isso não vi nada nos jornais. Sim, os aviões estão há semanas colados ao chão, mas e os tapetes voadores, ninguém fala deles?


Talvez pudesse apanhar um e ir vê-la, um que fosse do meu décimo quinto andar em Aubervilliers até ao sétimo andar dela no Cacém. Um expresso das Mil e Uma Noites, de uma janela num subúrbio feio de Paris até uma janela num subúrbio feio de Lisboa. Apanhava-o aqui e voava calmamente por esses céus, vendo do alto as luzes de Paris à noite, França fora, por cima dos Pirenéus, sobre as planícies de Espanha no meu tapete persa, deitado, dormindo quando precisasse, deixando naquela lã todo o cansaço acumulado.


Até chegar à janela dela. Aí, nem precisaria de deitar os cabelos de fora para eu trepar. O tapete depositar-me-ia na marquise e só teria de arquear a perna ao desembarcar, para não deitar abaixo nenhum dos vasos com plantas que ela tem ali muito alinhadinhos, entraria no quarto, despiria o fato-macaco, pousaria a chave número 15 em cima do fato-macaco amontoado no chão, com jeitinho para não fazer barulho e não a acordar, e deitar-me-ia ao lado dela. Gosto de a observar enquanto dorme. Fecharia os olhos e dormiríamos até a epidemia acabar. Ai, cabeça, cabecinha, as viagens que tu fazes. Voas, voas e ninguém te apanha.


Mudo de canal. Concerto. 1812 de Tchaikovsky. Gustavo Dudamel agita a batuta com um misto de fervor e loucura, as notas saem das partituras, levantam voo, rodopiam graciosamente no ar, dançam e fazem um pequeno compasso de espera antes de atacar o público com fúria. Há um massacre na plateia, há sangue, gritos, o público tenta defender-se, mas as notas continuam a bater nos espectadores e o maestro comanda-as ainda com mais vigor. Desta vez fazem uma investida mais violenta, todo o público está caído, contorcido, tentando defender-se, outros jazem inertes em poças de sangue. Os corpos vão explodindo ao ritmo dos tiros de canhão. As notas, claves de sol, claves de fá, colcheias, breves, semibreves, penetram a carne e as vísceras numa orgia de sangue e morte.


Neste outro canal está a dar um filme antigo, melhor assim. Vejo-me a mim, a minha Dorothy do Cacém, a pivô do telejornal e o repórter, de braço dado, a saltitar e cantarolar enquanto percorremos a estrada de tijolos amarelos na direção de Oz: We're off to see the Wizard / The wonderful Wizard of Oz / We hear he is a whiz of a Wiz if ever a Wiz there was / If ever, oh ever a Wiz there was / The Wizard of Oz is one becoz / becoz, becoz, becoz, becoz, becoz / Becoz of the wonderful things he does. Haverá coronavírus em Oz? Não estamos no Kansas, não. Nem no Cacém, nem Lisboa, nem Paris, nem neste cu-de-Judas onde vivo, nem na real puta que nos pariu a todos. Sei lá onde estamos.




Leio as notícias no computador. Descobriram um tubarão da Groenlândia com 400 anos. Um coração que bate, olhos que se movem, músculos irrigados a cada minuto com sangue novo, um fígado que continua a cumprir a missão de manter as funções necessárias à vida, tudo isso gerado quando Portugal estava sob o domínio dos Filipes espanhóis. É fantástico pensar nessa perenidade.


É caso para dizer que Deus, por uma vez, esteve bem ao dotar este animal de uma vida tão longa, não dando o mesmo privilégio aos humanos, muito menos merecedores. Isto no plano meramente hipotético de Ele existir, porque perdi a Fé há muito tempo. Como acreditar num Deus que fez Job, aquele que era – e agora vou usar um termo que certamente não era conhecido no tempo das escrituras – o Seu fã número um, passar por tudo aquilo? Por puro sadismo e para que Job provasse que continuava a ser fã? Este Deus que faz milagres quando lhe convém, mas deixa uma criança ser assassinada pelos pais? Deus é torcidinho. Diz que os tubarões da Groenlândia só atingem a maturidade sexual aos 150 anos. O Criador escarnece assim deles, dando-lhes a condição de quase imortais, mas em troca têm de esperar século e meio até poderem disfrutar do instinto que faz mover o mundo – e prazer supremo. Sacana, tira com a mesma sobranceria com que dá.




Distraio-me com coisas inúteis. Por isso, comecei a construir a máquina. A minha brinque-balantezinha, a minha criação, coisa linda do papá. Ainda precisa de trabalho para funcionar, mais umas boas semanas, mas eu não saio daqui, não tenho pressa.


Contemplo-a, encostado à ombreira da porta do quarto das ferramentas, e sinto um certo orgulho ao ver a miríade de porcas, parafusos, cavilhas, chaves, martelos e alicates espalhada na bancada, de tal forma que mal se vê um centímetro quadrado da superfície. E se todas estas ferragens, de repente, me atacarem como as notas musicais no concerto que vi na TV? Cala-te, concentra-te no raio da máquina.


Por enquanto, a minha criação ainda é uma coisa indefinida, mas quando o braço articulado estiver no sítio vai começar a ganhar forma. Tenho as vigas de aço inoxidável que vão compor o braço à minha frente, alinhadas. Devo estudar muito bem as dobradiças, onde as vou colocar, como vão funcionar para que o movimento seja perfeito.




Tocam à porta. É a Dona Ermelinda, a porteira do prédio, portuguesa como eu e como todas as porteiras de Paris. Trouxe-me o jantar: arroz de tomate e rissóis. Agradeço e conversamos um pouco. Convido-a para entrar e tomar um copo de vinho, mas diz que tem o marido à espera para jantar. É bom homem, também. Gente simples e de bom coração. Despedimo-nos, ela com um “até amanhã, se Deus quiser” – visivelmente, não leu nada sobre os tubarões da Groenlândia nem é assaltada pelas dúvidas que eu tenho sobre a pertinência de acreditar em Deus.


É bom ter alguém que cuida de nós, que nos dá mimos, esta espécie de sucedâneo de mãe, que não faz grandes perguntas nem obriga a grandes reflexões, apenas nos dá conforto, nos faz sentir o calor de que mesmo os solitários como eu precisam. Embora até goste de cozinhar e não desdenhe as tarefas domésticas, sabe bem sentir que alguém me poupa a esse trabalho, permitindo-me dedicar mais tempo à criação. A Dona Ermelinda e o estafeta da Uber Eats acabam por ser duas versões diferentes do mesmo conceito, a primeira gratuita e movida pelo coração, a segunda paga e movida pela ganância, mas ambas com o efeito de me pouparem tempo, alimentando-me.




Vou para a cozinha regalar-me com as iguarias. Como enquanto converso com o manjericão. O arroz de tomate está divino, malandrinho como deve ser, os temperos no ponto, picante sem excessos, pedacinhos de pimento pelo meio. Os rissóis são caseiros. Pouca gente tem hoje a paciência e, sobretudo, o tempo necessário, para fazer rissóis em casa, preparar a massa, estendê-la com o rolo – nunca estive em casa da Dona Ermelinda, mas imagino-a a usar um rolo à antiga, de madeira, daqueles com que as mulheres esperam os maridos infiéis de madrugada – apurar o recheio, recortar cada um dos rissóis, polvilhá-los e fritá-los. É um processo que exige entrega e amor.




Sinto tonturas e percebo que me esqueci do comprimido. Tomei o fósforo, sim, mas não me lembrei da dose diária do antidepressivo com que o Senhor Doutor me anda a drogar vai para dez anos. Aliás, reparo que nem o tomei, nem tenho mais. Preciso de ir à farmácia amanhã. Pior: também não encontro a receita. Estou lixado. Procuro o maldito papel em todos os cantos da casa, até chegar à conclusão de que deve ter caído de algum bolso. Vou ter com o manjericão e refilo com ele. Sinto o chão fugir debaixo dos pés. Por que raio me andam a fazer isto? Acalma-te, meu, não te passes. Sinto-me furioso, sei bem o que sofro quando me esqueço de tomar aquilo. O aperto na cabeça, as picadas no cérebro à noite.




Regresso à máquina, sei que isso me vai acalmar. Ainda há que aperfeiçoar muito o mecanismo até ele fazer aquele barulho – tchac, tchac, tchac – que imagino quando estiver pronto. Conto as vigas de aço. São 18, tal como tinha desenhado nos planos. Esta vai ser a parte mais complexa da máquina. Não é fácil criar um braço articulado que se mova exatamente como queremos. Na ponta, vai ter uma luva de boxe.


Para montar os encaixes das rodas dentadas, vou precisar de furar o metal com o berbequim. É tarde, já passa da meia-noite, agora não pode ser. Fica para amanhã. Sei que a noite vai ser agitada por não ter tomado o comprimido.




Pesadelos. Revejo a cena do concerto em que as notas atacavam os espectadores, mas em fast forward. A imagem recua e avança. Acordo várias vezes a transpirar. Vejo-me depois a caminhar na rua por entre cadáveres. Homens, mulheres, crianças inertes, com máscaras postas. Passo por cima do corpo de uma mulher que segura um filho. O lixo das ruas voa com o vento, tudo à volta parece destruído. Percorro o quarteirão que separa a casa da farmácia, cuja fachada contrasta com todos os outros edifícios por estar limpa, poupada à destruição. Os taipais levantados, tudo no interior parece impecável. O chão limpo, as prateleiras arrumadas, mas a porta está fechada, com um letreiro a dizer “encerrado”. Porquê, que raio, porquê?


Já acordado, como frente à TV. Lá está a pivô-noiva-do-repórter que tem como convidado o marido da Dona Ermelinda. De camisola interior branca de alças deixando ver os pelos no peito, bigode farto, barba por fazer, visivelmente transpirado. A aparência dele não parece incomodar em nada a pivô, que o apresenta como um importante empresário do ramo dos tapetes voadores.


Famosos desde os contos das Mil e Uma Noites, os tapetes voadores chegaram até aos dias de hoje com a garantia de serem um transporte individual aéreo seguro e prático. Com orgulho, o marido da Dona Ermelinda conta como a atual crise deu um impulso considerável ao negócio, já que todos os regulamentos sobre a limitação do espaço aéreo são omissos em relação a este produto. Mas a grande revolução trazida pela sua empresa é o facto de estes tapetes serem acionados por telepatia. Basta, então, pensarmos nisso para termos um tapete mágico na nossa janela, pronto para nos levar onde quisermos? Pergunta a jornalista. Exatamente, diz ele, é como um serviço de táxi sem precisar de telefone. Intervalo para publicidade, anunciam a pílula da felicidade permanente. Melhor do que um antidepressivo. Elimina todos os sentimentos negativos e acende os interruptores das sensações positivas – mesmo num mundo de merda, sinta centenas de flores brotarem dentro de si, o sol, o mar, o céu azul, calor, paredes caiadas, cocktails, cadeiras de lona e uma piscina. Desligo.


Visto-me, tiro uma máscara lavada de uma das prateleiras da estante e uma declaração de saída de casa. Ponho a cruz no quadradinho onde diz “compra de bens essenciais”, escrevo a data, a hora e assino.




De máscara posta, fecho os olhos e fico alguns minutos parado a receber o sol na cara. Relembro o caminho feito no sonho, mas, desta vez, tudo parece normal, tirando a parte de haver muito pouca gente nas ruas e as poucas que vejo estarem de máscara.


Tal como no sonho, a farmácia está impecavelmente arrumada. Algumas pessoas fazem fila, guardando uma distância de um metro umas das outras. O dono da farmácia, que eu batizei de o gajo, e o empregado, a quem chamo o coiso, estão ao balcão. Não simpatizo com nenhum dos dois e penso que o sentimento é mútuo. Chegada a minha vez, explico a situação, perdi a receita, mas eles terão um scan e devem poder dar-me uma caixa. O coiso imprime o scan e parece renitente em dar-me o medicamento, o gajo aparece e diz-me que só podem dar a partir de receitas originais e aquela está caducada. Explico que não, é válida por seis meses e eles não têm o direito de me recusar o tratamento, conto-lhes o que sinto quando não o tomo, que já passei uma noite horrível e a próxima será pior. Tem de ligar ao seu médico. Mas é sábado, caraças! Como querem que ligue ao médico, agora?




Insisto. Pedem-me que saia. Ainda lhes pergunto se vendem a pílula da felicidade permanente. Fingem que não ouvem. Grandes cabrões. Sinto-me tomado pelo espírito da personagem do Michael Douglas no filme Falling Down. Respiro fundo, dou meia-volta e ponho-me a caminho de casa por entre pragas e juras de nunca mais voltar ali. Passo pela frutaria do bairro que tem boas maçãs à venda. Não daquelas que parecem saídas de uma fábrica, iguais umas às outras, que não têm sabor. Das boas, mesmo. Feias. Compro dois quilos, um para mim e outro para a Dona Ermelinda e para o marido.


Agradecem muito e ainda se oferecem para pagar, o que naturalmente recuso. Subo no elevador, o saco com o quilo de maçãs na mão, olho-me ao espelho e tento perceber o que vejo. Quem é aquela pessoa? Quem és tu, meu? Como chegaste aqui? Onde está a tua chave número 15 e o teu fato-macaco? Conseguiste alguma coisa da vida até hoje, meu cabrão? Tens amigos, além dos porteiros? Essa mulher de quem falas tanto existe mesmo? Nem sabes o nome dela. O que é que fizeste de importante? VOU ACABAR A MÁQUINA, PORRA! Grito esta frase várias vezes. Dou guinadas à cabeça para tentar expulsar todos estes pensamentos sombrios.




Chegado a casa, sento-me à mesa da cozinha e fico uns minutos quieto, a cabeça apoiada nas duas mãos. Pego num papel e numa caneta e ponho-me a escrevinhar um poema dedicado aos dois da farmácia:


Está aqui o gajo. E o coiso também,

Andam os dois nesta luta

O gajo é filho da mãe

E o coiso é filho da puta.


É do mais básico que se possa imaginar, mas sinto-me como se tivesse acabado de escrever a mais perfeita estrofe d’Os Lusíadas. Começo a rir sozinho, à gargalhada, até me virem as lágrimas aos olhos.


Falta-me fazer os furos na máquina para criar os encaixes para as rodas dentadas. Fumo à janela antes de deitar mãos à obra. Olho para baixo e aquilo em que estava a pensar tornou-se realidade, o marido da Dona Ermelinda não estava a mentir quando o vi falar na TV. Isto deve mesmo ser acionado por telepatia, tenho um lindo tapete persa suspenso no ar, aqui no beiral da minha janela. Saio, deito-me nele e deixo-me levar.



 

Nasceu em Lisboa e é jornalista do canal Euronews, sediado em Lyon (França), onde vive desde 2003, depois de um primeiro período entre 1999 e 2001 e de ter também trabalhado para a RTP. É igualmente fotógrafo, tendo participado em várias exposições e projeções, tanto individuais como coletivas, em vários países, incluindo uma recolha de retratos de portugueses e lusodescendentes residentes em França. É co-autor e co-realizador da curta-metragem "Motorphobia", exibida no Fantasporto em 2016. O confinamento de 2020 fê-lo retomar o gosto pela escrita. "A máquina" é o seu primeiro conto. Retomou igualmente o projeto, abandonado há alguns anos, de escrever um primeiro romance, que espera terminar e publicar em breve.

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