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RAFAEL VIEIRA




SÓLIDO DE REVOLUÇÃO



1


Desde que assentou a pandemia que ninguém punha os olhos no Professor. Não o viam há algum tempo nas ruas do Bairro que tanto andarilhava, nem sequer por aqui, no seu café favorito. Há imensa gente que não é vista há imenso tempo. Não desde que se foi ensaiando esta singular forma de viver as ruas, as casas, a convivência das gentes. Os cafés funcionaram durante algum tempo ao postigo e foram depois reabrindo a conta-gotas, primeiro este, depois aquele. Às pessoas é que lhes custava voltar, o regresso da confiança ia mais além do que acordar deste sonho em que alguns persistiam.


O fotógrafo desenha mentalmente círculos sobre as mesas e cadeiras ao chegar ao café, a medir distanciamentos a quem já estava. Escolhe uma mesa na periferia da esplanada e senta-se pesadamente. Café longo, copo com água, o de sempre. Beberica o café e percorre o bairro com a vista, mão esquerda a comprimir o copo de água, sentindo-lhe o perímetro. A esplanada está estrategicamente colocada, abarca três ruas em profundidade, ladeadas de prédios que convergem no horizonte. A seus pés repousam todos os carros, na espera de dias úteis, e um alinhamento de árvores ralas serve o conjunto com um pouco de verde. O apartamento do Professor fica ali no segundo andar daquele prédio desbotado, a uma centena de passos do café. Todos o conhecem de vista e referem-se a ele como Professor, o velhote caminhante, se bem que o porquê do termo se perdera, algures no tempo e nesta geografia urbana. O Professor pertence à fauna do bairro, uma dessas figuras pitorescas que todos os bairros têm, a juntar ao louco, à beata, ao beberrão, ao trapaceiro, ao caloteiro, ao calado, ao mandrião, à coscuvilheira, ao adúltero, à gateira, ao fanfarrão… Cada bairro é uma pequena aldeia, com os seus costumes e rotineiros pecadilhos, com os seus bardos e jograis, drogados e festeiros.


Viam o Professor a atravessar o bairro rotineiramente, com passadas firmes, certeiras. Nariz afilado e olhar inquisitivo, corpo ligeiramente arqueado pela idade, vestido com gosto. Soltava breves bons-dias e demorava-se pelos cafés a semear conversas. Talvez o nome de Professor tenha surgido pelos seus comentários, sempre precisos, elevados, desarmantes. Foi aqui, neste mesmo café, que o fotógrafo conversou com ele pela primeira vez, ainda de madrugada, hora dourada. O Professor bebia o seu abatanado de sempre, o fotógrafo bocejava da noite anterior. E o bairro dormitava, de pálpebras ainda recolhidas. O Professor vira-se na mesa e diz-lhe que ele devia ser fotógrafo. Já o observara e as suas idiossincrasias assim denunciavam. A tendência primeira de quem fotografa é de preferir observar a conversar, de abdicar do paleio em favor de enquadramentos e de estéticas. Usam-se os olhos como lentes, a focar, desfocar, a pupila como um diafragma, regulando a intensidade da luz que desagua no cérebro. Constantemente a procurar pontos de vista e composições, a analisar a luz e a sombra de cada momento. Acertou.


A lojista contava que o Professor fora um dos primeiros a instalar-se no bairro, quando este se resumia a uma simples tira de prédios de rendimento, alçados na orla da cidade. Apontava para a fotografia monocromática emoldurada numa das paredes da loja, que mostrava orgulhosamente o início do bairro, ruas estéreis e sem carros, sem árvores, imaculado. Uma fonte serifada anunciava o nome do bairro como rodapé da imagem. Uma ilha de betão à margem da civilização, separada então da cidade por uma mancha de mato por domesticar. Depois a cidade absorveu o bairro, cresceu até ele, urbanizou-o. O Professor, a personagem do Professor, era construída por aquilo que se contava, por aquilo que os vizinhos iam partilhando. E tornava-se necessário reconhecer quais os pontos que eram acrescentados e quais os contos que são verdadeiros. Cada um ouvia coisas diferentes, aquilo que lhes interessava, talvez até reservassem na memória apenas aquilo que desejavam ouvir e colaboravam no restante com a sua imaginação. A figura do Professor assumia contornos quase míticos. Que caminhava por promessa, que tem o bicho-carpinteiro por ter sido atleta de alta competição, que tinha sido Professor de uma universidade estrangeira qualquer, que ganhara prémios científicos, que estava incógnito no bairro, que isto e que aquilo. As cortinas do apartamento do Professor estão corridas, são pesadas, garridas, algumas folhas verdes espreitam por debaixo das cortinas de uma das janelas, talvez a do quarto.


O farmacêutico sabia a história dessa planta, explicou-lhe o Professor. É uma aspidistra, o Professor tem várias pela casa, só não as pôs na pequena varanda que prolonga a sala sobre a rua. A aspidistra dá-se mal com luminosidade, diria ainda, com um aceno de ombro. O Professor arranjou as plantas depois de ler o livro de George Orwell em que a personagem central tem um desencantamento total com a vida, farta-se das amenidades e das facilidades à sua disposição, abdica delas. O Vil Metal, era esse o título traduzido do livro, era claramente autobiográfico, dizia o Professor ao farmacêutico; Gordon Comstock era Orwell, era Blair. Toda uma história sobre ir ao fundo e testar-se numa situação de carência, um livro estóico. Talvez isto tivesse também algo de autobiografia do Professor, algum desencanto somado com a sua vida de antes, talvez do ensino, ou de alguma outra das histórias que se acumulavam sobre si?


O Professor era de uma elegância com as pessoas, sabia falar, sabia ouvir, fazia-se ouvir. E já não o vêem há algum tempo. Dissera um dia ao fotógrafo que cada pessoa é em potência um sólido de revolução, um argumento curioso, lançado entre tostas mistas e meias de leite no café. Foi uma bela escolha de palavras. O conceito era que um elemento ou figura bidimensional ganhará profundidade ao rodar sobre um eixo, ao fazer a sua revolução. Da bidimensionalidade transforma-se em sólido, ganha dimensão, texturas. E prolongava a ideia para a literatura e as relações humanas, interessava-lhe a profundidade das personagens, a profundidade das pessoas. O Professor não conseguia ler nada quando a caracterização das personagens se ficava pela superfície, enfadava-se de imediato se não houvesse substância, relevância. As histórias são as pessoas, as pessoas fazem as cidades, não são os prédios, as casas ou o espaço entre elas. E assim também na vida, interessava-lhe ir desbravando as estranhezas e as peculiaridades que as pessoas escondem e que vão revelando aos poucos. Como se as descascássemos, camada a camada, desanuviando gomo a gomo, suave ou rapidamente. Revolução aqui serve vários significados, é polissémica. Alguém que fale assim, tem mesmo que ser Professor. De literatura, de filosofia, de qualquer coisa de que se alimenta o intelecto. Talvez até de geometria ou de arte.


Comentava o Professor abertamente sobre a beleza de alguém que passava, sem ser ofensivo, soltava apenas o comentário, nada boçal, frontal. Apreciava tanto o belo, procurava-o constantemente, sem quaisquer desejos envolvidos, sem mais do que o querer alcançá-lo. O fotógrafo percebia-o muito bem, o Professor sabia-o também, partilhavam dessa busca pelo belo. Por isso é que se aproximaram, orbitando um sobre o outro até ficarem geoestacionários, acrescentaria o Professor.


O fotógrafo lança expedições nocturnas com a máquina a tiracolo, procura as fachadas dos prédios com as casas ocupadas e as janelas iluminadas, todas estas faces urbanas do confinamento. Regista as luzes nos apartamentos, as diferentes cores de intimidade, as famílias reunidas em refeição, casais em uníssono, todos os solitários. Há umas quantas uniões forçadas e esforçadas, umas mais do que outras. E, de volta a casa, fotografa sistematicamente os objectos do quotidiano confinado, ampliando-os em macro. Deus está verdadeiramente nos detalhes, na colher de todos os dias, na espuma do café de mistura, na ampliação do menisco vermelho intenso granada do vinho, numa casca de fruta vista de perto. O Professor iria apreciar este acervo, talvez até dissesse, e dirá certamente, que este era o ponto de vista normal das criaturas de Blefuscu e Lilliput.



2


Tiago Lastro guardou-se em casa logo com o início do confinamento, e sente falta crescente dos seus giros pelo bairro. Fica-se por casa a trilhar este mapa do confinamento entre quatro paredes, sempre iguais, monótonas. O velho professor de geometria olha pela janela do prédio, para fora deste seu mundo de agora, um mundo limitado a três assoalhadas. Reformou-se há bem mais de uma década, ano a mais ou a menos, que as datas já se atropelam ao querer emprestar mais detalhe a alguma memória. O distanciamento temporal tem destas coisas e o distanciamento geográfico também. Sente falta de ver e de ser visto pelas ruas, das conversas com as gentes do bairro, de falar e de ser ouvido.


O seu apartamento está demasiado vazio para confinamentos, sem família e sem gatos. Está assim vazio já há muito tempo. Um pequeno mundo estático, repleto de livros e de Aspidistra elatior, livros e plantas aninhados pelos cantos, a repousar nos peitoris. Romances e vasos alinham-se nas estantes, sobres as mesas e aparadores. O vidro da janela emoldura os volumes dos prédios em frente, sucedem-se uns aos outros, trepando sobre o horizonte. No bairro e no bairro contíguo a este, conhecem-no como Professor. Tratavam-no assim, porque poucos, e cada vez menos com o somar dos anos, sabiam o seu nome. E só um punhado destes é que sabem alguns pormenores da sua vida de ensino. Viver sozinho é a elegia do viver entre paredes, com tudo o bom e mau desse estar a sós. Com autonomias e desconfortos, com o facilitismo de deixar-se ir. Tiago não conseguia deixar-se estar, teve demasiado mundo para se ficar. E o que o faria ficar em casa todos os dias? Nada, nem as aspidistras precisam, elas são resistentes, podem sobreviver a meses sem uma gota de água. O Gordon Comstock sabia-o bem. Tiago é um passeador de alma cheia, é o que faz, quer caminhar e observar tudo peripatético. Sente falta desses longos passeios, de tomar os caminhos de sempre ou de trilhar por novas passagens. Os caminhos, mesmo na repetição, revelam sempre coisas novas, detalhes que passaram insuspeitos à vista de olhos, ou adendas, melhorias introduzidas pelos habitantes.


Tiago acordou numa destas manhãs um pouco mais cansado do que o habitual, combalido. Tem despertado assim, nuns dias mais abatido do que noutros. É a falta de dar exercício às pernas, certamente. Todo o erguer e preparar-se para o dia dentro de casa é um custoso processo. Ao espelho repara que está mais pálido do que é habitual. Talvez seja esta falta de melanina, esta impaciência da pele pela falta de Sol. A cada dia que passa, Tiago empalidece, mais e mais, cada vez mais.


Tinha sido péssimo no ambiente familiar, mas todos adoravam Tiago no seu trabalho. Nunca tinha tempo para a família, para todas essas relações de sangue e de proximidade, mantinha-se ausente, ao largo. Quando veio para este bairro vindo do seu último trabalho, onde estagiara e começara a sua vida de escolas, instalou-se à distância de minutos a caminhar até ao liceu local. E aí trabalharia nas décadas seguintes. Foi-se afastando da pouca família que tinha, a mulher falecera no bairro anterior, a enteada crescera e fazia-se mulher no estrangeiro, cavou-se então um fosso intransponível. Mas não se sentia só, vivia para o trabalho. E sem quaisquer interesses e ocupações além dessa dedicação missionária, quando se reformou, esfumaram-se os motivos para resistir aos dias. Então Tiago caminhou e falou muito, e sempre. Procurava recuperar o tempo e algum objectivo, vivia para os passeios e para as conversas. Passou anos assim, era conhecido, é considerado. E então, chegou a pandemia e todo este confinamento que o prostrou em casa.


Com o passar das semanas, cresce a rotina, sucedem-se os dias todos iguais, sem diferenças, é a monotonia do prisioneiro. O fechar e o correr de cortinas tornam-se mecânicos, as refeições acumulam-se, breves e insonsas. E Tiago repara que está cada vez mais pálido, quase translúcido nas terminações. Parece ir desaparecendo aos poucos, lentamente, num fechar de olhos. Aproxima as mãos da lâmpada de leitura da sala, primeiro a direita, depois a esquerda e o pulso, o seu corpo deixa agora passar a luz. Agita as mãos como a sacudir esta nova descoberta. Eleva os braços até à luz do sol filtrada pelas cortinas e obtém o mesmo efeito diáfano.


Tiago fazia a sua vida sem carro, corria as redondezas todas passo a passo e usava os transportes públicos sempre que as tarefas exigiam ir mais além das proximidades. Isso era sempre sair da sua estreita área de conforto. No início, na génese deste bairro, este estava despido de gente e de construções. Tinha alguns poucos prédios, muitos lotes estavam ainda vagos à espera de quem lhes pegasse, fosse um projecto de casa ou um sonho de negócio. Habitantes foram chegando e instalaram-se. Eram sobretudo jovens casais com descendência ansiada ou a caminho, e também profissionais no início de carreira. Toda uma avalanche de professores, de bancários, escriturários e contabilistas, amanuenses e guarda-livros. Pioneiros nesta revolução urbana, um ensanche citadino para os pequeno burgueses que orquestravam toda a burocracia da democracia recém-instalada. Receberam o crescimento da cidade de braços e sonhos abertos, até que a cidade absorveu o bairro e os rodeou completamente. E Tiago ficou, envelhecendo e engelhando com o bairro, amadurecendo na rama da árvore. Resistente e antigo como uma árvore, sólida e perene, em volta da qual tudo cresce e se transforma, alheado da sua existência. Observa os ruídos, os barulhos, até a poluição, sem intervir. Os carros preencheram o bairro, novos cheiros inundaram-no. Pessoas chegaram e outras tantas partiram, ficaram alguns filhos de pais do seu tempo, outros filhos e outros pais para aqui vieram. E ele, vetusto, a caminhar pelo empedrado das calçadas e pelos lajeados de betão dos passeios, traçados a estereotomia falsa. O café servia as conversas. Era ali que conhecia pessoas, que construía conversas, que se sentia autêntico. Era algo que o fazia sair todos os dias.


E partes do corpo de Tiago desvanecem, num processo lento de lume brando. Será isto a doença, será isto mais um efeito secundário do vírus? Ninguém se compadece de si. Pela janela, vê que os olhos das casas estão plenos de vida; as janelas, as marquises e as varandas enchem-se de gente durante todo o dia e toda a noite. Alguns exercitam-se em movimentos frenéticos, repetitivos, outros saltam e gesticulam. Correm naquela e noutra varanda, outros fazem jogos e movimentos que não deixam adivinhar razões a esta distância. Agita-se a vizinhança toda, pequeno formigueiro de gente, olham-se alguns à distância, comentam, cumprimentam-se, falam, cantam. Os gestos multiplicam-se pelo canto do olho. O reflexo de Tiago aparece menos visível no vidro da janela.


O fotógrafo apareceu numa destas noites, a registar as fachadas dos prédios. Primeiro fotografava aquele em diante, depois o outro ao lado, sucessivamente, varrendo-os como se construísse um panorama do bairro. Demorou-se um pouco mais debaixo do apartamento de Tiago. Não o veria como estava, camuflado por detrás da cortina, não quereria que o fotógrafo o visse assim aos pedaços, interrompido. Tiago está há demasiado tempo sem pessoas, sem os seus passeios. Mas assim como está teriam receio de o ver. Ao espelho vê-se deformado, partes do seu corpo já se confundem com o reflexo da parede atrás de si. É como um fantasma, partes do corpo incompletas, outras inteiras, o contorno diáfano dos dedos, deixando apenas adivinhar as unhas e as articulações da mão. Ele precisa que o vejam para existir, ele precisa existir para ser visto.


Tiago decide-se por um passeio nocturno. Sai às escondidas do prédio, envergando um largo casacão que lhe oculta o corpo até aos tornozelos, para que não lho vejam, os braços e as mãos já invisíveis, e assim também as orelhas e os pés, já espectro. Aventura-se fora de portas e navega pelo bairro, sorrateiro. Talvez não reparem nos detalhes e no contorno do seu corpo, difuso contra as formas da noite. Mas é melhor jogar pelo seguro, o pânico que causaria. Tiago é um Gregor Samsa, um monstro. Caminha ao longo da rua, saltitando furtivamente de sombra em sombra, escapulindo-se aos raios de luz amarela com que os candeeiros de rua marcam o pavimento. Repara então que a sua sombra desapareceu completamente.


3


O fotógrafo instala-se na esplanada do café, solta a máscara da face com um ágil movimento de dedos, destreza ganha em meses de põe e tira. Trazem-lhe uma bica longa e um copo com água, o mesmo de sempre. As janelas do Professor estão sem cortinas, já não o vê faz tempo. O fotógrafo pergunta à dona do café se sabe alguma coisa sobre aquilo, apontando para a janela, indagando, enquanto ela desinfecta a mesa do lado com frenéticos movimentos circulares. Termina a tarefa e segue-lhe o dedo até encontrar o apartamento a que se referia. Devolve o olhar ao fotógrafo e encara-o como se estranhasse a pergunta, uma breve ruga a desenhar-se na testa. A dona responde-lhe que ali não mora ninguém há já algum tempo.



 

Rafael Vieira nasceu em Coimbra, onde estudou arquitetura. Estagiou num atelier-quinta no hinterland coimbrão, trabalhou em Barcelona e depois em Lisboa. Em Lisboa, onde se demorou uma década, trabalhou na sua área até que a construção estagnou. Criou uma empresa na LX Factory e editou a DIF e a Le Cool Lisboa, além de ter escrito para outros meios. Integrou a associação Movimento Acorda Lisboa. Viveu em Antuérpia, Luxemburgo, Siracusa e Viterbo. Voltou para Coimbra, arrancou com um mestrado em Reabilitação de Edifícios e continua a trabalhar em arquitetura. Escreve para a Parq, Bica e Coolectiva. Mantém a página Coimbrastreetart no Instagram.


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