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Pedro Teixeira Neves

Atualizado: 28 de fev. de 2022





O TEMPO TREME





«Porém, o silêncio não era um desses silêncios límpidos e abstractos,

foi adquirindo pouco a pouco aquela complexidade

que adquire quando se dilata por um longo e ansioso instante.»

Ernesto Sábato, «Relatório Sobre Cegos»





I.

Agora tudo tinha passado. Não há mal que sempre dure... Mas não posso negar ter saudades dos tempos em que por alguns anos fui cão. Voltámos ao mundo complexo das relações humanas, mas o que se ganha em «humano» perdemos em «primitivo». Olho o meu cão, penso ainda no estado emocional que lhe exacerba todos os sentidos a cada vez que percebe que irei levá-lo à rua. Sinto falta dessa intensidade, de ser inteiro, de ser cão. Abro o frigorífico, retiro uma rodela de chouriço e com ela na mão levo-o de volta para a varanda onde tem a sua casota. Regresso à cozinha. A televisão continua o seu solilóquio. Ouço falar num velho dentro de uma jaula. Ouço melhor a história. Hei-de contá-la ao meu pai.


II.

Durante anos vivemos na crença da normalidade. Hoje, tentado a retrospectivar o passado, percebo que todos nós deixámos para trás a nossa essência animal. O mundo implodiu de um dia para o outro. Tornámo-nos medo e suspeita. E, como o animal que perante a ameaça se esconde na toca, enrola o seu corpo de espinhos, recolhe-se para dentro da casca, trancámos as portas. E sem o perceber voltámos a ser bichos. Deixámos de tocar o mundo com as mãos. Ocultámos os olhares do olhar do outro. Passámos a escutar no silêncio ruídos de sótão.


– Temos de ter muita paciência até conseguirmos achatar a curva. Estamos perante um inimigo invisível.


Assim decorreram os primeiros dias. E também nós nos tornámos invisíveis; inimigos. Sabiam bem as pantufas ao acordar, a calma esquecida ao pequeno-almoço, os miúdos até mais tarde na cama. Comparado com a correria anterior do casa-trabalho-casa, parecia maravilhoso. E era. Ninguém percebeu então a dimensão do que aí vinha. Como os demais, os agora invisíveis, eu só saía à rua para comprar víveres; e notei: ia cada qual como se fosse guarda-costas de si mesmo. Um pequeno gorila que habitasse, adormecido, e ora houvesse despertado dentro de cada um. Só por delicadeza tentávamos fazer passar a ideia de que não era o fim do mundo, de que não estávamos dispostos a disputar com garras o último naco de carne no supermercado, o pacote de leite, o arroz, o triste, último rolo de papel higiénico.


Depois, começaram as mortes. E o seu crescimento galopante para lá das fronteiras, para lá de todos os gráficos, era-nos ininteligível. Afinal, vivíamos no século XXI, epidemias, pandemias, pestes, eram termos que julgávamos apenas parte de histórias passadas, coisas dos livros de História, registos medievais. Quisemos, claro, acreditar que a morte era estrangeira, como todo o mal e desgraça que vemos e ouvimos na televisão. E do número de mortos também eu me fui protegendo atrás do écran. Às tantas, ouvir as conferências de imprensa diárias da DGS, com a ministra da Saúde e especialistas diversos, chegava a parecer-me algo de mundano. Terminada a contagem do dia, este seguia, não tão diverso dos demais. Víamos um filme, líamos um livro, os miúdos agarravam-se aos computadores e à internet, atacávamos o frigorífico, ao fim da tarde ainda descíamos a arejar em breves passeios sem sair do bairro. Aquele novo normal parecia não ter efeito nas nossas vidas momentaneamente suspensas. As crianças pareciam não se importar. Era como se estivessem de férias, mas sem estar… Era estranho e, sobretudo, explicar-lhes o que se passava: como ia passar-se, quando ia tudo passar. Se ia passar. Sim, ia, porque ia passar. Tudo acaba por passar, tudo tem o seu tempo de durar. E, sim, ia ser um instante.


Não ia. A verdade é que não ia. Este era um novo tempo, éramos nós no tempo parado. As rotinas alteraram-se por completo e com elas, nós. Logo, logo, pensei que a minha mulher tinha começado a usar binóculos, tal o crivo censório com que passou a escrutinar os meus passos em casa. Quis fugir-lhe, mas não conseguia. Três quartos, sala, dois quartos de banho, cozinha – não se pode dizer ser grande labirinto. Passei a calar-me para evitar discussões. Sem o saber, ressuscitava o meu potencial auditivo. Pressentia-lhe os passos e até a respiração e tratava de disfarçar o que sabia incomodá-la.


– Então, querida, tudo bem?


Mais tarde iria pôr as meias no cesto da roupa suja. Ela olhava-me com suspeita e virava costas. O problema foi com as crianças; presas em casa, o barulho que faziam, pouco a pouco, tornava-se insuportável. Em vez de três filhos, parecíamos ter em casa uma excursão de finalistas em Ibiza ou Torremolinos. Como havia eu de conseguir concentrar-me para preparar, escrever e enviar a tempo para a escola os relatórios do trabalho semanal à distância com os alunos? Para o meu pai, apesar de tudo, foi mais fácil. Se já vivia como um Robinson numa ilha dentro do seu quarto, acompanhado pelas suas intermináveis séries televisivas policiais, folheando os jornais que dia-a-dia eu lhe trazia pela manhã, ali comendo as refeições que lhe levávamos, mais ali se acoitou. Não cheguei a perceber se ele se apercebeu do que se passava lá fora; no mundo e em casa. Talvez, talvez tenha entendido, pois muitas vezes, quando ia ter com ele, percebi que tinha invariavelmente desligado o aparelho auditivo. Era a sua defesa contra o mundo. E contra os netos em pulgas, aditivados pela clausura. Não parecendo, há máquinas que são piedosas. Uma vez perguntei-lhe se a comida estava boa, e ele respondeu-me que sim, que o comissário Montalbano tinha muita sorte com as mulheres que os crimes que investigava lhe faziam aparecer ao caminho.


– O quê?!


Ele voltava a enfiar-se no écran, eu saía e fechava a porta.


– Meninos, não incomodem o avô.


Os dias passavam. A pouco e pouco percebi que cada um de nós de algum modo ia regressando a um estado primitivo. O cerco forçado a que em casa nos víamos mutuamente obrigados despertava em nós a nossa genética animal. Falo por mim. Ficava horas e horas na sala a ler um livro e reparei que, três semanas passadas, as minhas capacidades olfactivas também tinham alcançado índices extremos de sensibilidade. Isso fazia-me sentir bem, fazia-me sentir cão. Com vagar e prazer comecei a reconhecer os cantos aos cheiros da casa. O cheiro próprio de cada filho, os odores e aromas da minha mulher conforme os humores de cada dia, o cheiro de cada especiaria no condimentar das refeições, o cheiro dos peidos do avô que passavam por debaixo da porta e invadiam o corredor da casa. Via então perfeitamente que passara a haver um antes e um depois do Grande Confinamento, como viria a ser conhecida esta época nos livros de História.


O Homem, esse, curiosamente, parecia continuar o mesmo. Ouvíamos notícias aterradoras. O real teimava em suplantar a ficção: «Em Espanha, um grupo de idosos infectados foi recebido com pedras e explosivos em transferência de lar. De acordo com o relato da Polícia, os veículos médicos foram apedrejados e foi necessário escoltá-los até à cidade. Um carro atravessou-se ainda no caminho das ambulâncias, tendo os seus ocupantes, dois homens de 32 e 25 anos, sido detidos. A recepção violenta não se limitou à entrada na cidade. Uma vez chegados à residência onde o governo autonómico da Andaluzia os realojou, os idosos foram cercados por cerca de meia centena de pessoas que ameaçaram tomar medidas se mais infetados chegassem à cidade.» Sobre a felicidade era-nos dado saber muito pouco. As notícias da dor e do medo acoitavam-nos como redes de arrasto. Há homens que ferem como frutos podres.


Discuti com os meus filhos e com a minha mulher como nunca. Magoámo-nos e amámo-nos como nunca. Apesar das máscaras, fomos verdadeiros como há muito não éramos. Disputámos o espaço, o direito de cada um ao seu ruído, ao seu silêncio, vimo-nos como verdadeiramente éramos – descobrimos que as identidades que vivíamos eram uma ficção que a vida em sociedade nos incutira. Também o planeta que conhecíamos e respirávamos era uma ficção, um mau enredo, um argumento de baixo orçamento. Passámos a reconhecer sentidos outros para lá dos cinco que nos dizem pertencer. Vendo, passámos a ser cegos e a ver melhor. Ouvindo, passámos a ser surdos e a ouvir melhor. Sentimos com as mãos, mas fechámos os olhos e passámos a percepcionar o mundo com a memória dos amputados. E assim percebi a escuridão do mundo que o vírus tinha iluminado.


III.

Celebrámos o nosso primeiro Abril em liberdade condicionada. Poucas coisas me comovem como o «E Depois do Adeus» ou o «Grândola Vila Morena». Este ano, a Avenida da Liberdade vazia, atravessada por um único homem com uma enorme bandeira de Portugal, fez-me lembrar o Papa Francisco na solidão da Praça de São Pedro. Havia muito tempo que não arriscava uns versos.


aqui

abril inteiro transborda

a ausência multiplica e canta a liberdade.


anda ensinar-te-ei

com quantas janelas se faz um cravo.


IV.

No Verão do ano seguinte permitiram-nos ir à praia. Lembro-me bem, não estava um calor por aí além, apesar de ser Agosto. Tirei a minha senha para ir ao banho e aguardei. Quando chegou a minha vez desisti, estava cheio de frio. Voltei para a nossa cabine acrílica – o calor era de estufa, impossível de aguentar. Resolvemos voltar a casa, tomar banho de mangueira no terraço. Ao lado, o vizinho do terceiro esquerdo exercitava-se no ginásio que ali improvisara, mesmo ao lado da horta que a vizinha do primeiro direito cultivara, embora separados por uma placa de vidro. Cada qual atrás da sua máscara. Refrescámo-nos e fomos para casa. Desci para ir às compras; o porteiro mediu-me a temperatura e anotou os 36,6 no seu caderno de registos do condomínio, que todos os meses era entregue às autoridades de saúde. Nas filas, a suspeita mal disfarçada sob uma capa de civilidade. Passáramos todos a desconfiar da palavra intimidade.


A ministra da Saúde envelhecera imenso no espaço de um ano. Apesar de todos termos aprendido a viver no novo mundo, recuperar uma ideia de normalidade não foi fácil. Foi como se tivéssemos todos de aprender a tocar o mundo pela primeira vez. A tudo conferimos novos significados. Percebemos aquilo que há muito os escritores sabiam: para lá do amor e da amizade, bastam-nos uma esplanada, um bom café e um livro. E que nada faz sentido sem o outro; as nossas gavetas são o outro.


Ignorar a realidade cancerosa não a faz desaparecer, tal como ignorar um diagnóstico trágico não nos impede de caminhar para o abismo. E por isso habituámo-nos. A tudo nos habituamos. Os chineses não se desabituaram de vender animais vivos. Os americanos não se desabituaram de apontar o dedo aos outros. A europa do norte não se desabituou de acusar a europa do sul. O mundo não se desabitou da pobreza. A guerra não se desabituou das aberturas dos telejornais. No chamado «terceiro mundo», a sede de sangue redobrou, o cheiro a caça recrudesceu. Os homens não se desabituaram de tudo esquecer. E lentamente o mundo foi regressando aos moldes antigos. Habituámo-nos a desabituarmo-nos. E o que parecia ter sido lição, ensinamento, aprendizagem, tornou-se história. Não se esquece o Homem de ser homem. A vida antiga recomeçou a ganhar o seu espaço. Mas, conseguiríamos todos viver sem a doença? Quanto tempo demoraríamos a libertarmo-nos dela, das suas marcas e cicatrizes? Reaprenderíamos facilmente a liberdade? Perderíamos o medo do outro?


Andas a desperdiçar sol? – a minha mulher a telefonar-me: ando. Tinha saudades do sol. O sol é um consolo – não por acaso a palavra terá o sol dentro. Há palavras que luzem. Tal como nomes que cintilam: Lispector, Eugénio, Sophia… Aos fins-de-semana tentei trazer o meu pai comigo para a esplanada. Em vão. A esplanada já não mais tinha a presença dos seus amigos. Tinham mais de oitenta anos, tinham sido os mais afectados. Muitos continuavam obrigados a ficar em casa; pestíferos. E o comissário Montalbano? Bem, o comissário continuava rodeado de belas mulheres. Ao menos sei que o meu pai dorme bem.


V.

Os dias continuaram numa estranha paz durante meses e meses. Uma falsa calmaria tinha caído sobre a cidade e sobre as pessoas. Para além das aulas, que continuavam a consumir-me horas de trabalho, vi-me às tantas a escrever um diário, que ainda hoje continuo. Diziam os psicólogos que era uma boa ideia. Uma forma de não «ser apanhado», como um cão acossado.


– Um diário é uma belíssima ideia. É um lugar onde a imaginação não tem limites! – disse-me a minha mulher quando lhe falei nisso. Eu fiquei a pensar na redundância…


As palavras têm esse dom, o de atenuar o sofrimento.



VI.

AGORA – Agora tu podes ser o agora. O teu nome pode ser o chamado. O teu corpo a aprender a possibilidade da noite, tornar-se seu rosto e memória. Reconhecendo a noite em volta, a noite nos outros. Atrás da porta de casa pode estar o abismo. O teu nome, nu, pronto. Como um pensamento pronto a esfumar-se. O agora nunca tão concreto: tão agitados os silêncios.


ANSIEDADE – É um enxofre por dentro. Uma cisma. Investigadores do cérebro não teriam dificuldade em reconhecer pulsões óbvias de inventar um novo mundo. Mais admirável.


CONFINAMENTO – E a pergunta maior são os outros, à tua frente, ainda. Com paredes pelo meio, profiláticas. A negação do desejo do outro.


CONTÁGIO – Somos todos o mesmo pó, o mesmo mar.


CONTAMINAÇÃO – Como um sudário colado à pele. E em cada corpo um rosto a revelar-se suspeita. Os olhos como princípio do prazer, logo os olhos suspeitos.


CRIANÇAS – Que peso destes dias lhes carregará o corpo? Queimadura?


FUTURO – De que varanda ou janela avistá-lo? Em que mundo se encontra? Uma certeza: a luta contra a morte continuará, discreta, como música de aeroporto. Será sempre longa a viagem da ausência.


FUTURO I – Nem cânone nem turista ocidental.


JANELA – Acordo duende, com uma languidez de panda, como se tivesse engolido o oceano propofol-pacífico, ou como se tivesse passado a noite num bacanal narcotântrico. E dou nisto, olhos vítreos sobre o mar, poeta onírico-lírico deitado na cama em transe transatlântico, tentado a poetizar as plantas dos pés. No fundo, acordo à superfície do pesadelo. O sono confundido em palavras como nitrilo, orofaríngeo, endotraqueal, cristaloide, efedrina, atropina, cogula, nastro, etc.


LEMBRAR – Que vamos todos morrer, ou que todos temos uma oportunidade para repensar as vidas? A obscuridade também é um lugar de luz. Antes de chamar morte ao corpo estamos todos nel mezzo del cammin.


LER – Oração é circularidade, leitura é fluxo. Circularidade é não parar até morrer, fluxo é continuidade.


LIBERDADE – Qual é a coisa qual é ela mais difícil de ser do que parecer?


LINGUAGEM – Layoff, cerca sanitária, covidário, coronograma, inovabons, corona bonds. «Language, is a virus».


MÁSCARA – Espelho, espelho nosso, haverá alguém mais belo do que éramos? Deixamos cair a máscara ou pomos a máscara? Uma coisa é certa, do futuro não faremos uma estátua à imagem do passado. Haverá cavalos à solta na cidade.


MEDO – De uma época de medo, uma vez rasgada e reduzida a ínfimas poeiras de memória, o que ficará? O tempo nada teme: sequer as torres bancárias de Manhattan, os edifícios das bolsas ou os cofres do Vaticano. É bem certo que o medo tem memória, mas nada dura para sempre; medo não é medula.


NORMALIDADE – Mas, se foi a normalidade que nos trouxe até aqui!... É preciso que o mundo se coloque em dúvida. Amemos a obscuridade momentânea; nela está a ansiada luz.


NOVO – É preciso inventar um novo «novo»; primeiro passo: colocar pontuação nos nossos pensamentos. Um ponto e vírgula antes de agir. Depois, atirar flores aos milagres a ver se estes frutificam. E deixar fluir os dias: como os sonhos por um corpo de mulher.

NÚMEROS – Ao querer progredir, geram a barbárie disfarçada de bem-estar.


ÓBITOS – Há lágrimas que desconhecem o caminho dos olhos.


VACINA – Buscaremos, ainda e sempre, o fruto proibido da realidade. Alice, para a Rainha Branca: «… ninguém pode acreditar em coisas impossíveis!» A Rainha Branca: «Quando tinha a tua idade, fazia-o sempre cerca de meia-hora por dia; às vezes chegava mesmo a crer em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço.»


VII.

Aos poucos o governo nos foi das leis da emergência e da calamidade libertando…


VIII.

Quatro anos passaram… Deus e o Diabo. A morte continuou o seu ofício de matar. Os investimentos voltaram a esquecer-se do SNS e de novo acudiram aos bancos. Os profissionais de saúde voltaram a manifestar-se nas ruas. Na Assembleia da República voltou a manifestar-se quem muito liberalmente trouxesse à discussão a pertinência de um Serviço Nacional de Saúde.


– Anda, vamos a uma livraria. Compras um livro.


– Já viste uma vida a escapar-te das mãos?


Nunca. Deixo-a e vou para o café. Já pouco resta das restrições com que vivemos nos últimos anos. Ainda se vê uma ou outra pessoa com máscara, uns que preferem manter uma suposta distância de segurança. Pode a terra tremer, mas o tempo não pára. Um velho chega e senta-se na mesa ao lado da minha. Treme as mãos. Põe o jornal sobre a mesa, abre-o com pequenos solavancos e quando a empregada chega pede um café.


Todos o olhavam com suspeita, de viés. Não tinham passado cinco minutos chegaram dois agentes da Lei. Os polícias pediram-lhe que se levantasse e os acompanhasse. O velho tremeu as pernas, mas não se mexeu. Os agentes então pegaram nele, um de cada lado, mão no braço, mão na axila, mão no braço, mão na axila, levantaram-no e levaram-no. Na rua, uma ambulância esperava-os. A ambulância abriu as portas traseiras e engoliu o velho. A empregada voltou. Trazia um pano e um líquido desinfectante com que limpou a mesa a círculos vigorosos. Terminei o meu café e levantei-me, indisposto com a cena. Quando é que os deixarão sair? Antes de ir embora, notei que uma enorme borboleta azul tinha ido pousar em cima da mesa onde o velho estivera.


E olho o livro que leio e pergunto-me pela salvação através da literatura. Hoje regressa o campeonato de futebol com portas abertas. Ouvi dizer que os padres mantêm as confissões por via telefónica. As missas voltaram, mas têm menos fiéis. Os shoppings, ao contrário, acolhem legiões às compras. Voltámos a ser semelhantes ao que éramos. A telescola é outra vez história. Voltaram os debates sobre penaltis-fantasmas. A televisão voltou a regurgitar lances polémicos, arbitragens suspeitas, discussões infindas. Afinal, só para os velhos o tempo parece ter parado. O Homem voltou a sentir-se muito seguro de si mesmo. E para as suas certezas não há vacina, não haverá nunca. O mundo voltou a claudicar. O barulho dos carros substituiu o canto dos pássaros, o óleo dos motores em Veneza baniu os golfinhos, o fumo das fábricas coloriu os céus das cidades com a cor de pulmões fumadores. O Homem como ele desde sempre: esquecido de que dele no mundo um dia só restará pó.


Eu, tal como todos os que voltaram às suas antigas rotinas, sem licença poética, voltei a encarnar o homem moderno da sociedade de todas as urgências e velocidades. O caminho percorrido parecia ter sido circular, como uma oração. Talvez o que vivemos tenha sido mesmo uma guerra. Porque as guerras revelam a verdadeira natureza do Homem e esta era a Natureza humana, errar de novo. Não necessariamente melhor. Voltámos à liberdade do velho mundo, é verdade, mas esquecemos uma vez mais que as nossas liberdades para com o mundo um dia acabarão com esse mesmo mundo, hipotecando aquele de amanhã. E assim vamos inclinando o mundo para o abismo. Não precisamos de vírus, vermes ou bactérias. Bastamo-nos para a escuridão.


A casa voltou a ser casa. Espaço e intimidade. E distância. Escola. Hospital. Escola. Actividades. Casa. Voltámos a ter vizinhos. Afinal muitos sobreviveram. A sociedade ficou com crateras, cicatrizes, feridas, ausências. Voltámos a juntar mãos, aproximar beijinhos e abraços. Eu voltei às livrarias e aos cafés. Basta-me. Agora, aparentemente, a realidade é confiável, mas toda a aparência se funda num real insalubre. Persiste a sensação de medo e de dúvida. Algo pesa sobre nós; o peso da experiência.


Penso nisto enquanto vou buscar o cão para o passear. Atrás do vidro, ao ver-me, pressente que o vou libertar, que vou levá-lo à rua. Tem as orelhas para cima, o faro apurado há muito que me intuiu chegar, a cauda a dar a dar, o dorso ávido do meu toque, das festas que irá receber, os olhos vibram-lhe de excitação. Também eu, agora que tudo voltou ao «normal» tenho saudades de ser cão. É estranho este paradoxo, que tenhamos de estar confinados para voltarmos a ser cães, a sentir plenamente, a activar em pleno os nossos sentidos. O real anestesia o primitivo em nós. É esse o perigo do real que vivemos, o de nos tornarmos máquinas na cidade programada.


No telejornal de hoje, ao almoço, escuto uma notícia que por via do inédito e extravagante em si começa por me chamar a atenção. Ouço melhor: o pivot de serviço diz que hoje, ao início da manhã, ao entrar ao serviço, um funcionário do jardim zoológico de Lisboa deparou-se com uma cena insólita. Dentro de uma jaula tinha encontrado, sentado no chão, grades trancadas a cadeado, um velho a ler um livro. A câmara do repórter de imagem começava por mostrar um plano aberto da jaula dentro da qual se percebia um corpo. Ao lado viam-se outras jaulas, com leões pachorrentos, anestesiados. Depois, o plano aproximava-se e centrava-se sobre a cara do homem que ali lia, aparentemente alheio ao mundo em volta. Foi então que o espanto me tolheu. Aquele velho… era… era o velho do café… da esplanada, o que tinha sido levado pelas autoridades. Sim, era ele!... O jornalista introduzia o braço com o microfone através das grades e tentava que ele lhe respondesse às questões. A cena lembrava uma antiga performance de um escritor, de apelido Pimenta, que, sim, também ele, numa jaula em tempos… O velho a nada respondia, limitava-se a ler o seu livro dentro da jaula. Ao repórter disse apenas: «Ser livre é no mundo humano mais difícil sê-lo que parecê-lo.» Isto antes de, uma vez mais, o irem buscar, o terem erguido e o terem levado a contragosto. O velho lia um breve romance de Bohumil Hrabal, «A Terra Onde o Tempo Parou». Nas imagens televisivas, ao vê-lo, uma vez mais, ser levado em braços, qual um Cristo de Ribera descido da cruz, lembrei-me da história do livro, e da inesquecível personagem do tio Pepin. E lembrei-me do seu morrer, um dos mais belos que alguma vez li: «Era o tio Pepin. A irmã baixou-se, pegou no tio como uma criança, debaixo dos braços, de tal modo o tio era leve, como uma menina a levantar a boneca do carrinho.


«Vovô», disse a irmã, «tem aqui uma visita». (…) … o pai segurava o irmão e olhava para os seus pés, as plantas de pés azuladas, como que lavadas em lixívia, de que se descascava a pele branca, o tio estava sentado, nu, com a toalha à volta da barriga, parecia o Cristo coroado de espinhos.» Hei-de contá-la ao…


– A mim também não me peçam milagres. Vou sair e apanhar ar, sentar-me ao pé da praia e ler. A prisão torna-se cansativa…


Virei-me assustado. Era o meu pai. Havia meses que não saía do quarto. Reactivamente, pensei em dizer-lhe que ainda não era permitido, que mais umas semanas, que a proibição já não devia durar muito, que os mais vel…


– Tens toda a razão, pai. Vou contigo. E o Montalbano?


– É um bom comissário, um belo comissário.


E esboçou um sorriso, que ainda me pareceu guardar alegria. E percebi que nos faltava ainda trocar muitos silêncios. Percebi que importa é não descrer da eternidade.



 

Pedro Teixeira Neves tem carteira de jornalista desde 1994, e passou por vários órgãos de informação, dos jornais às revistas, e pela televisão (programa Câmara Clara, RTP2). Publicou dois romances (o terceiro está previsto para Março), vários livros de poesia. Tem vários livros de literatura infantojuvenil (três deles com ilustrações próprias), contos e outras colaborações dispersas. Foi fotógrafo da revista Epicur e lançou dois livros de fotografia em torno do Fado, ganhou ainda dois prémios da Fundação José Saramago e assinou trabalhos dispersos. Atualmente, escreve e pinta. E cuida dos filhos, esse eterno confinamento.

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