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Olinda Gil

Atualizado: 28 de fev. de 2022






DISTOPIA EM PIJAMA



Apenas uma biblioteca


Retomo a casa, no ritual de sempre. Entro, tranco a porta, calço os chinelos, verifico se a porta ficou mesmo fechada. Como quando volto a entrar em casa para ver se o fogão ficou desligado, quando abro as portas dos wc públicos com os cotovelos, pronta a fazer malabarismos de circo só para fazer xixi. Ou então aguento muito, venho para casa, como agora. Tenho de ir depressinha para a casa de banho, mas os chinelos estão calçados e sei que a porta está trancada. É apenas uma mania, podia ser pior. Podia repetir estes gestos cinco vezes de seguida, podia lavar as mãos de quinze em quinze minutos (o que, ah!, com a pandemia até talvez nem fosse estranho). Só e apenas para me dizer a mim mesma que a linha entre a loucura e a sanidade é muito ténue. Já pensei algumas vezes em passar para o lado de lá, mas fiquei sempre aquém. Ainda bem. Assim ainda sei que o que penso é meu (apesar de na loucura continuar a ser tudo nosso).


Fechei a porta. Sim, eu sei. O porta-chaves infantil, com um animal de peluche, oferecido pela minha sobrinha numa ida ao jardim zoológico. Numa outra vida, em que podia levar a minha sobrinha a qualquer lado.


Para que saibam, e não restem dúvidas, sou uma pessoa só. Defino-me assim com positivismo. Não fui remetida ao abandono pelo mundo, eu é que não aprecio muito os outros. Ok, aprecio um pouco, há pessoas que aprecio mesmo, amo, mas gosto de voltar a casa ao final do dia e ouvir o silêncio. (Não preciso de andar de volta dessas pessoas a toda a hora.) Aquele silêncio da cidade, composto por carros sempre em circulação durante a noite. (Ah, e apartamento, que anedota! Alguma vez seria casa? Então, não gostava, um quintal, relva e sol? Assim, só tenho uma pequena varanda, em que uma cadeira de praia, que poderia usar para ler, disputa lugar com o estendal da roupa. A vida é feita de muitas destas coisas sem glamour. Fazer xixi e estender roupa, por exemplo. Fazer uma destartarização ou uma citologia).


Não que o teletrabalho me incomode. Oh, vida malvada, prefiro aturar certas colegas online do que in loco. Posso revirar os olhos à vontade. E nem saudades do trânsito insuportável, apesar da companhia agradável de podcasts. E aquelas horas eternas sem trabalho, em que se finge trabalhar para não nos serem atribuídas tarefas ainda mais desagradáveis do que não fazer nada, sem poder estar a fazer alguma coisa. É que, com tanto malabarismo de circo, eu não iria certamente levar um telemóvel para descarregar um ebook. E quinze minutos. Que são quinze minutos num dia, ou em dois ou três dias?


Havia o café, claro, e até fizemos uma vaquinha para comprar uma daquelas máquinas de cápsulas topo de gama, mas o pessoal depois leva cápsulas de marca branca. Que são quinze minutos, outra vez? E, pior ainda, tantas vezes com companhia desagradável, como o administrativo de RH que gosta de mandar bocas foleiras aos engenheiros sobre casas de putas, e ri-se sozinho, porque eles estão completamente a leste do que ele está a dizer.


O problema é esse, o do café. Eu prefiro um café americano ou um das cápsulas, das boas. Nunca fui fã de bica, ah, mas sou tão fã dos pastéis de nata do café do meu prédio, que se acumulam nas minhas ancas. Ou um chá num qualquer dia de inverno, uma água de sabores (e cerveja), no verão. Tomados ao pé de casa, no jardim ao pé do trabalho, ao fim do dia, em qualquer outro lugar, ao fim de semana. Apanhar sol na cara, sentir uma brisa de primavera. É isso que me faz falta.


Tirando isso, a minha casa é o meu refúgio. O lugar de excelência onde me sinto segura. Olho mais uma vez para o meu porta-chaves de peluche, e penso, quantas vidas galdérias andam por aí? Pessoas agora em pânico porque nunca mais viajaram, não podem sair à noite ou ir a uma almoçarada de amigos. Quando é que estas pessoas punham os pés em casa, faziam o seu xixi sentadas e estendiam a sua roupa lavada? As vidas diferentes da minha são muitas vezes um mistério, assim como certamente a minha vida de solidão escolhida, por não gostar de estar com os outros, será um mistério para elas.


Para mim, tanto me faz mais uma quarentena, afinal eu gosto mesmo é de estar sozinha. Cá está, sinto falta do tal café que quase nunca é café, do solinho e da brisa de primavera, de ler num jardim da cidade, que a minha varanda não dá para nada. Tirando isso, já sei ao que vou, outra vez em casa, agora já sem pânicos de supermercado.


Olho outra vez para o porta-chaves. Será que da última vez também fecharam as livrarias e bibliotecas? Não me lembro, da última vez estávamos todos a pensar demasiado em papel higiénico.


Começo a sentir o coração a bater, um medinho estúpido. Estão a ver aquela linha entre a sanidade e a loucura? Não preciso de comprar livros, tenho ali tantos para ler. Mas se, se não for só um mês ou dois? Se se prolongar sem um fim à vista? Ficarei confinada à minha própria colecção de livros? É que aquilo que aos outros pode parecer muitos livros, na verdade, é só uma pequena amostra do que há no mundo. E como pode ser uma amostra limitada! Olho para a pequena colecção de clássicos gregos e latinos. Tão completa, mas pequena, porque mesmo assim, foram os resistentes ao seu tempo. Uma amostra. Aquilo que é o futuro da nossa civilização, da nossa vida. Uma amostra. Dá-me assim aquele pânico, aquele medo. Ia começar agora mesmo a minha distopia de livros, em pijama.


***


Passaram poucos dias deste novo confinamento, desta anormalidade da anormalidade do novo normal. Qualquer dia não nos lembramos de como era a vida antes. Com certeza Chomsky devia saber explicar isso, deve haver um método subversivo qualquer a ser aplicado pela comunicação social para nos fazer uma limpeza à memória. Parece que vivo à beira da loucura, o meu pêndulo a cair mais para o lado da insanidade. Em todos os cantos de casa descubro uma teoria da conspiração: sim, porque já não se podem percorrer esquinas. Há as teorias que proliferam na net, mas eu desconfio de tudo desde que fecharam as livrarias e as bibliotecas, e já crio as minhas próprias conspirações.


O meu mundo, cada vez mais meu, difere do dos outros. Sinto que tomei consciência de algo que todos os outros desconhecem.


Esta é uma história, uma distopia, a minha distopia de pijama. Os livros vão ser proibidos para sempre. Isto foi só o começo, a pandemia uma desculpa implementada para se dar início a esse plano. Os meus livros são apenas os que restam. Nem que seja apenas para mim, uma vez que não consigo acesso a quaisquer outros. Tenho de os proteger. Não sei bem como, não tenho passagens secretas no meu apartamento. Mas sei que, qualquer dia, mercenários me arrombarão a porta e farão uma fogueira.


Não posso ler, sob o perigo dos livros terminarem. Quando terminar de os ler nada mais me restará. Penso que talvez possa escrever. Esta história, que nem é história, é só e apenas uma loucura. E eu que nem sou escritora.


Talvez esteja apenas com a síndrome do impostor, mas acho que qualquer outra história é melhor do que a minha. A do escritor, por exemplo, que deixou de escrever porque deixou de viver. Ou a da mãe, que ficou desempregada e nem tem como sustentar a família (mas tem de acompanhar as aulas online dos filhos). A história do sem abrigo que vive no limbo de ter de ficar em casa sem ter casa. Ou a história dos ricos desavergonhados que se atrevem a reclamar quando estão de quarentena em boas casas com bons jardins, frigoríficos cheios e o aquecimento central ligado.


Mas esta é a minha história. Ainda só lhe achei o princípio. Olho para todos os meus livros à procura de inspiração. Tenho de lhe achar o meio e o fim, encontrar o caminho, o fio condutor. Eu, que nem escritora sou.


O dia está a terminar. Soa o saxofone que o meu vizinho, todos os dias a esta hora, toca na sua varanda. Como calhava bem um café e um pastel de nata.



 

É licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e mestre em Ensino do Português e das Línguas Clássicas. Iniciou a sua prática de escrita no "DnJovem", suplemento do "Diário de Notícias". Colaborou em diversas coletâneas e publicações, e foi 3º prémio do concurso literário "Lisboa à Letra" em 2004, na categoria de prosa. Em 2013 editou, a título independente, Contos Breves, Sudoeste (Coolbooks, Porto Editora, 2016; 2014 em ebook) e Sobreviventes (2017, 2015 em ebook).



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