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Nuno Camarneiro

Atualizado: 28 de fev. de 2022





NÃO É O FIM NEM O PRINCÍPIO



O senhor Luís conversa com a dona Ana, estão sentados lado a lado no jardim do prédio, sem máscaras, sem distanciamento, sem papas na língua. Para um e para outro a culpa é “deles”, a culpa é desses filhos da puta, do Trump e do chinês e do caralho que os foda a todos. De toda a merda que andaram a fazer e basta ver as estações que andam avariadas e as árvores que não dão flor e os pássaros que não cantam como cantavam.


Da janela aberta do escritório para o jardim descem perguntas e sobem respostas, certezas e castigos.


Tenho um ficheiro do word aberto à espera de um romance, e nem o tempo sobrante, nem a casa fechada, nem a crença reforçada no poder salvífico da livralhada o podem escrever por mim.


Daqui a vinte minutos, uma aula por zoom sobre a “degradação de pinturas murais”, os alunos andam cansados e eu também, não do vírus que é novo, nem da experiência que nunca foi tentada, estamos cansados de nós mesmos, dos nossos rostos digitalizados, dos mesmos cenários de livros e fotografias emolduradas. Nas casas de cada um as conversas andam às voltas como pássaros negros rondando um moribundo, alguns conversam sozinhos em quartos fechados, em apartamentos pensados para ali não estarem. Os infectados e as mortes são as únicas novidades, nenhuma boa notícia pode começar com “hoje o número de mortos…”.


Ao contrário do senhor Luís, vejo pássaros que nunca vi e tento imitar-lhes o canto, invejo-lhes tudo, até não serem homens.


Pela Internet circulam imagens dos canais de Veneza agora povoados por golfinhos e cisnes. É mentira, uma montagem, os poucos meses de confinamento não remedeiam os séculos de poluição, ruído e tráfego de gôndolas e vaporetti. O tempo dos bichos não se mede por nós nem pelas nossas ansiedades, eles sabem bem quando hão-de voltar.


Depois da aula vou dar um “passeio higiénico”, como diz o primeiro-ministro e tem razão. Nos últimos meses fiquei a conhecer todas as ruas, todos os caminhos e carreiros da pequena povoação onde moro. Sei onde cresce o funcho, o alho-bravo e o lírio das praias, sei onde param os pilritos, os borrelhos e os cartaxos. Sei a que horas passa o senhor grisalho em passo militar, conheço os percursos da velhinha que arrasta uma perna e também vi algumas vezes o casal de cegos amparados um no outro a caminho da paragem do autocarro.


O mundo é tão diverso, tão rico e tão complexo nestes poucos quilómetros quadrados como no resto do planeta somado.


A Rosarinho é louca e salta os muros da vizinhança para roubar plantas que transplanta para um jardim bizarro. É um crime bonito e inconsequente, a Rosarinho gosta de cactos e de plantas robustas, dessas a que alguns chamam escravas e que aguentam tudo, até a incúria ou a atenção excessiva.


Há homens que passam horas dentro de carros em frente ao mar com os rádios ligados, gostava de saber o que pensam, mas a verdade é que até sei.


Regresso a casa, uma reunião também por Zoom e depois outra aula. O senhor Luís e a dona Ana permanecem sentados no jardim, ele estende um pano no chão e retira de um saco do Pingo Doce pão, chouriço, queijo e uma garrafa de vinho. A dona Ana interrompe o tricot, leva a garrafa à boca e solta com alegria: Ah, caralho!



 

Nuno nasceu na Figueira da Foz, é investigador e professor universitário. Em 2011 publicou o seu primeiro romance, No Meu Peito Não Cabem Pássaros, também publicado no Brasil e em França. Publicou um texto na prestigiada Nouvelle Revue Française na rubrica Un mot d’ailleurs e tem diversos contos em revistas nacionais e estrangeiras. Em 2012, venceu o Prémio LeYa com o romance Debaixo de Algum Céu, já traduzido em italiano e brevemente em francês. Em 2015, publicou Se Eu Fosse Chão, um livro de contos, e Não Acordem os Pardais, ilustrado por Rosário Pinheiro e a sua primeira incursão pela literatura infantojuvenil. O seu livro mais recente é O Fogo Será a Tua Casa (Dom Quixote, 2018).

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