Fotografia da autora de ©Louis Hallam
A VALSA DE ESTHER
Esther está no quarto há algumas horas.
A porta está aberta, mas ela não quer sair. Dizem assim pra ela: vai, Esther, pode ir.
Mas Esther não sai, não arreda o pé do assoalho arranhado pelas valsas sem par sobre o sinteco esburacado do podre da chuva que vem e vai através da janela de vidro canelado faltando caco.
Esther encara a maçaneta caída sem chave já há horas. Olhou para a parede amarelada de mofo do sol que não seca aquela parte do mundo. Já há horas que Esther parou de dançar. Está sentada debaixo do lustre de metal que parece pingar nos seus cabelos emaranhados pela escova quebrada. A luz molhada do quarto de Esther a empurra para fora, mas seus pés estão grudados. Os olhos procuram uma faca, uma espátula. Precisa tentar arrancar os pés do chão. Seu corpo está poroso e não acredita que seja possível alcançar a tesoura que está a meio metro do seu braço esticado. A tesoura cortaria essas raízes do chão, acredita.
Esther está no quarto há horas. Muitas. O mofo das paredes já se transferiu para as costas amareladas de Esther. Nos buracos do sinteco agora já cabem os dedos dela que estão profundamente enfiados no assoalho. Esther chega a rodopiar os dedos quando ouve a valsa lá fora, mas os pés estão parados porque, se cortados do chão, podem, em igual medida, prejudicar a madeira do sinteco e sangrar os tornozelos.
O curioso é que Esther já tinha notado que o sol não esquentava naquele quarto. Já havia notado que a cada vez que encarava a porta aberta com a maçaneta pendurada, quase caída, os pés iam se afundando em volta das paredes que agora aparecem também em verde musgo. Esther às vezes pensa em se arrastar. Lembra-se que do outro lado da porta sempre aberta, há uma escada íngreme. Pode tentar se jogar de lá e, talvez, soltar os pés agarrados. Mas isso vai doer, é prudente não tentar. Esther é um réptil gelatinoso de aparência aquática.
Já são tantas horas nesse quarto que, raramente, é possível distinguir entre Esther, o chão e a parede. Nas infrequentes vezes em que é vista, contrasta com o marido, Assuero, que chega sempre tão vivo quanto as pessoas lá fora. O marido vem preocupando Esther. Vem dizendo que quer reformar a casa, consertar as portas, pintar as paredes, trocar o piso.
As escamas de Esther estão da cor do sofá marrom de onde se vê pequenos rasgos de espuma esverdeada, às vezes acinzentada. Quando o marido mandou os pedreiros quebrarem tudo para a renovação, ninguém viu Esther que estava naquele quarto já há muitas horas.
Nasceu em Minas Gerais, Brasil. Graduou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e tem um Mestrado em Artes e Cultura pela London Met University. Publicou livros infantis e adultos e seu romance Sorte foi um dos vencedores do Prémio Oceanos em 2019. É colunista do Caderno Dois de Cultura do jornal A Tribuna de Minas e do Jornal Rascunho, e editora da Capitolina Revista, distinguida com o prémio APCA 2020. Outros prémios da autora incluem, por três vezes, o Brazilian Press Awards na categoria literatura e o Maximiano de Campos na categoria contos. Em 2020 publicou Mapas para desaparecer (contos, Faria e Silva). Vive na Inglaterra desde 2001.
Muito bom, Nara!