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Mazé Torquato Chotil

Atualizado: 28 de fev. de 2022





ESPERANÇA EM TEMPOS DE PANDEMIA



O sapato com um pequeno salto lhe aumenta o tamanho. Cabelos negros trançados presos na ponta por uma presilha, calça comprida preta, blazer de uma lã com retângulos em preto e branco, uma certa classe, tem um andar simples e elegante. Na mão direita um carrinho de compras e na esquerda algo. Uma chave com um pequeno bicho de pelúcia? Uma mulher de 50 anos? Para de repente. Parece pensar em algo. Vira e volta. Um rosto maquiado encoberto em partes por uma máscara branca, rugas cravadas pelo tempo. Tem um ar contrariado. Teria esquecido algo?


Sou mesmo uma boboca! Como ir às compras sem a bolsa com o dinheiro? Esqueceu simplesmente. Se sente cansada aos seus 94 anos. Vive sozinha no apartamento de dois quartos e sala no quinto andar de um prédio de oito. Como pode?! Preciso voltar, refazer todo o caminho! O portão e a porta com seus códigos, chamar o elevador, descer no seu andar, caminhar até o seu apartamento, passando pelos dois outros antes, abrir a porta, pegar a bolsa, fechar a porta e uma vez mais refazer o caminho do supermercado. E para comprar o que? Iogurte, pão... poucas coisas. Não tem vontade de comer, aliás, não tem vontade de nada. O tempo lhe parece longo. Quantos anos faz que perdeu o marido? Deixou de fazer as contas.


Depois, encontrou alguém, um exilado chileno em terras parisienses. Pôde ser amada, retomar as viagens, revisitar museus... sempre acompanhada. Adora ver pinturas de mestres. Fez cursos e por alguns anos pintou um certo número de telas. Agora, não tem mais gosto para pintar, nem para qualquer outra coisa. Se sente sozinha, tantas amigas desaparecidas... Não gosta de sair sozinha, pensa que a vida a dois é mais agradável. Ainda mais, o coronavírus fechou museus, cinemas, parou de uma certa forma a vida. Não se pode fazer muita coisa, tudo está como apagado, em compasso de espera, distante. Tudo parado e a gente aí nesse redemoinho de catástrofe. Tantas impossibilidades, tantos medos.


Até uns cinco – ou dez anos atrás – viajava de trem com frequência para ver a mãe em Bordeaux, na casa de repouso onde vivia nos últimos anos até morrer aos 104 anos. Da família lhe resta agora somente alguns primos distantes. Filha única, não teve filhos. Não tem mais vontades. Depressiva? Quanto tempo faz que não é acariciada por alguém? Quanto tempo não suscitou a vontade do outro? Sim, gostaria de fazer amor, de rolar de prazer. Sim, morrer de prazer, mesmo! Mas como? Como encontrar alguém nessa idade? E, portanto, está viva! Se sente com energia para dançar a noite toda e, no final dela, ser levada pelo amante para descansar em uma cama de lençóis de seda em tempos de verão, ser acariciada, beijada pelos lábios de mel do companheiro...


Sonhos, sonhos. Quem vai lhe dar carinho e amor nesta idade? Prefere partir, se não existir esperanças.


Na porta de entrada do prédio, cruza uma senhora que lhe tem sempre uma palavra simpática. À pergunta se recebeu a vacina, responde que não. Já viveu bastante, anda cansada, prefere partir se a doença lhe bater à porta.


Sozinha no elevador, tira a máscara. Se pegasse o vírus e contraísse a doença, seria um alívio. Seria bom dormir, dormir... descansar. Toque de recolher às 18h, confinada, sozinha, a falar consigo mesma para ouvir voz humana. Pelo menos uma vez por dia, desce, sem ter nada em particular para fazer, a fim de falar com uma pessoa. Com o zelador, com alguém na padaria. Não é culpa unicamente do vírus, mas ele veio como uma cereja em cima do bolo, como diz o ditado francês.


Tem medos. De perder a memória, de cair e quebrar algo e ter que ir para uma casa de repouso tal como sua mãe no passado. A ideia de morrer na rua não lhe agrada, melhor seria na sua cama durante o sono.


Pensa no vizinho do oitavo andar que descobriu um câncer e partiu na semana passada. Como sua mulher tinha problemas de locomoção, ficaram como que ilhados, dependentes de amigos para fazer as compras pesadas. Desde que tomou conhecimento da doença, depois que sentindo dores nas costas foi ver o médico, perdeu a cor, seu rosto ficou de um branco! Tinha uma filha que ainda trabalhando não podia ficar com eles todo o tempo, somente nas férias escolares. Terminou levando o casal para o Sul, onde morava. Não demorou muito, ele faleceu no terceiro dia após a chegada. Teria sofrido?


Outra vizinha que fazia parte dos primeiros a habitar o prédio, como ela, também teve a mesma doença. Decidiu que não iria fazer a operação recomendada. A doença evoluiria e terminaria por levá-la. Também vivia cansada, lhe disse quando a cruzou num momento em que ela passeava o cachorro.


Com a bolsa no braço, o carinho de compras e a chave, vai poder refazer o caminho.


Máscara,

máscara,

máscara!


Gostaria de não a utilizar, mas é obrigatório nas ruas, nos lugares públicos. Como não deseja contaminar ninguém, respeita. Mas não tem sintoma nenhum.


Está cansada de esperar alguém com quem dividir seus dias, sua ternura, seu amor. Na esquina do outro lado da rua, alguém lhe chama a atenção. De uma elegância reservada, paletó cinza, cabelos brancos, andar firme. Então, seus olhos brilham. Aperta o passo em sua direção, a mesma que deve tomar para fazer as compras. Será que ele também fará o mesmo caminho?


O sol conseguiu se esquivar das nuvens e lhe abraça generosamente.



 

Jornalista, pesquisadora e doutora (ciência da informação e da comunicação, Paris VIII) e pós-doutora (EHESS). Nascida em Glória de Dourados (MS, Brasil), vive em Paris desde 1985. É autora de Maria d’Apparecida negroluminosa voz, Na rota de traficantes de obras de arte, José Ibrahim: o líder da primeira grande greve que afrontou a ditadura, Trabalhadores exi­lados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985), Lembranças do sítio, Lembranças da Vila, Minha aventura na colonização do Oeste e Minha Paris brasileira. Em língua francesa é autora de L’Exil ouvrier e Ouvrières chez Bidermann: une histoire, des vies.

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