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Luísa Semedo

Atualizado: 28 de fev. de 2022





PEQUENAS MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE DONA BELINHA TERRA




“Antes, no tempo em que se morria, nas poucas vezes que me encontrei diante de pessoas que haviam falecido, nunca imaginei que a morte delas fosse a mesma de que eu um dia viria a morrer, porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe...”


José Saramago, As intermitências da morte


“J’ai toujours haï les ténèbres...”


Jean-Jacques Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire






CAPÍTULO I e único / A VERDADE

[As memórias são pequenas, fino leitor. Eu avisei no título, não foi à traição.]




Detesto pessoas.


Alto! Entrada desastrosa. Não posso espantar já a caça. Voltarei a este assunto. Enquanto não angariar simpatias, não poderei confessar os meus recantos mais sombrios. No fim, precisarei do teu perdão. Deixa-me, por enquanto, cometer umas graçolas para “animar a malta”, como dizia o meu Zeca. Até porque o tema não é ligeiro, se te ponho já a lacrimejar, tu foges a sete pés para os braços do consolo eficiente de um geladinho de chocolate ou de uma bola de Berlim. Era o que eu faria se estivesse no teu lugar. Confesso que durante o confinamento sonhei com as bolas de Berlim fresquinhas do Marco, as que chegavam às quatro da tarde para o lanche e que eu acompanhava com uma meia de leite com adoçante para equilibrar a diabetes. Era até um daqueles objetivos que me amadrinhavam no engano à solidão. Não era o único, mas já lá chego. Aliás, Marco, se me estás a ler, eu não me esqueci que te fiquei a dever os trinta cêntimos que faltavam das carcaças, pede à minha irmã Guida, ela sabe onde eu guardava a carteira. Perdão por esta mensagem pessoal, estimado leitor, mas a questão estava-me aqui a pesar na consciência e temo que esta seja a derradeira possibilidade de comunicar com o mundo dos vivos. Vamos ao que interessa, dizes-me tu, impaciente, e dizes bem. O tempo é precioso. Eu agora dele prescindo, mas tu não.


Take two. Novo início:


O meu nome é Florbela Terra ou Dona Belinha para as amizades mais jovens e as vizinhas impertinentes. Tenho setenta e sete anos acabados de desfazer. As estatísticas devem-me bem uns cinco ou seis anos. Quer dizer, a bem da verdade, quem deve é o meu compadre corona que lhes fez um manguito. Não acuso ninguém. Arranjem-se entre vós. O que é certo é que ainda podia viver uns aninhos. Para quê? Isso é outra história. Talvez ainda lá vá. Estou aqui a ganhar tempo e coragem.


Sei que estranhas esta familiaridade no trato e prepara-te, porque sou capaz de te dizer uma escabrosidade ou outra, mas confesso já não ter paciência, nem idade, nem existência, para salamaleques, e sinto que existe aqui entre nós um terreno favorável para uma possível cumplicidade. Por isso tentarei responder a todas as tuas perplexidades da maneira mais franca possível, como, por exemplo, esta que pressinto incomodar-te desde o início: mas esta está viva, está morta, é um fantasma, uma aparição, está no paraíso, no inferno? Olha, também não sei, até porque não sou crente, mas achei que ninguém melhor do que eu para falar de moi-même. E, para te ser sincera, esta é a experiência mais mística da minha vida, ou da minha morte, se preferires. Mas para minha defesa, diz-me tu, alguém mandou vir com o “defunto autor” Brás Cubas quando escreveu as suas memórias póstumas? Alguém questionou o homem ou o seu comparsa Machado de Assis, o moço das barbelas mais sexies do Rio de Janeiro? Então não me enfasties, se faz favor. Sei bem que não sou, como ele, uma autora encartada, o que me permitiria ter a credibilidade requerida para me dar ao luxo de extravagâncias literárias sem grandes resistências, mas, por acaso, até tenho umas coisitas em comum com o Assis. Diz que o homem era mestiço com pai negro e mãe branca portuguesa, ora eu também sou mestiça, mas o meu pai era cabo-verdiano. Não me reboles os olhos, foram as similitudes que consegui encontrar. Ah, espera, encontrei outra. Já não fazemos parte do teu mundo, excluindo a escrita, claro está. E falando da diaba, a escrita. Voltemos a ela...


Estou aqui a presentear-te com o meu Verbo por um só motivo, ou dois, vá. Desde que esta ramboia do vírus começou, achei indecente esta coisa dos números, uma pessoa a ver na televisão “e ainda não morreu nem um”, “ah já morreu um”, “morreram dois”, “três”, “quatro”... No meu dia foram vinte seis, vinte seis almas que cederam a vida ao compadre. No dia em que acedo a um momento de celebridade na televisão, falam de mim como um número. Mas que raio, eu não sou um número, sou a Belinha Terra, tenho uma história, sou uma indivídua, no verdadeiro sentido da palavra, não existe no mundo ninguém igual a mim, e nunca existirá. E para mais, acrescento outro motivo da escrita, quantas heroínas de uma ficção portuguesa são assim, crioulas como eu? Digam lá? Gostava de saber. Eu nunca apanhei uma e, no entanto, sou amiga desmedida de leituras. Deve haver, tem de haver. Mas eu não conheço. Por vezes lá aparece uma ou outra personagem secundária, um corpo que se compra para poder e porque se pode, uma criada, uma escrava. Eu não sou nem uma nem outra, sou uma Senhora e não estou à venda. Não me lixem com os vossos reflexos neocolonialistas, s’il vous plaît.


Esta está armada em fina, pensas tu ao ler estes apontamentos afrancesados que dão um toque colorido às minhas modestas memórias póstumas. Pois fica sabendo que sou madame viajada. Nasci e morri em Lisboa, no Bairro da Serafina, vivi os melhores anos da minha vida na Costa da Caparica, trabalhei em Coimbra e Évora, sonhei com Cabo Verde e enamorei-me uns aninhos em França. Bom, não foi em Paris, porque aquilo é mui dispendioso. Foi na maravilhosa Orlhac, Aurillac para os snobs dos parisienses jacobinos. E também falo um bocadinho de occitano. Va plan? E nem te digo nada sobre os queijos e os vinhos que os malandros por lá têm. Só de pensar que esta língua não volta a degustar um salers até me dói tudo. Quer dizer, por acaso, até não me dói nada. São as benesses a que temos direito quando somos finadas, é como estar numa piscina aquecida, a água suaviza o peso das mazelas.


Portanto, eu falo a língua que quiser. Até sei umas coisas em crioulo de Cabo Verde. Kuzé ki bu kre? Ora essa, se há palavras que soam melhor em francês, eu digo em francês, não me digam que esse não é mais um privilégio que se possa acordar a uma defunta? Os Portugueses são uns chatos com a língua, os Franceses também, é verdade, mas é diferente. Ai, uma pessoa diz modestia em vez de modéstia e cai o Carmo e a Trindade. É o que dá serem pessoas pouco viajadas. Tudo o que é diferente faz comichão. São uns invejosos.


Desculpa, querido leitor, não quero parecer arrogante, nem me quero zangar contigo. Eu sei que disse no início que detesto pessoas, mas eu gosto de ti. É uma honra teres escolhido passar este tempinho precioso da tua vida a conhecer a minha história. Se calhar, até já nos cruzámos um dia no Barbas, na Quebra Costas ou ao pé do busto da outra Florbela. E deixa-me já agora só dizer isto: que raio de ideia, um busto! Já não vou a tempo, mas se tivesse tido vida para homenagens póstumas, esperaria ser merecedora de uma estátua por completo, até porque, verdade se diga, aqui as minhas pernitas bronzeadas sempre foram o meu orgulho. Qual Tina Turner qual quê? Belinha Terra é que é. Sabe quem viu e poderá testemunhar. Entendo a ideia, põe-se só a cabeça para homenagear a mente, poupa-se na pedra e no trabalho do artista e toca a andar. E o coração? E o corpo? Foi a Florbela só uma cabeça? Não, não foi. Bom, lá lhe puseram as mãos, menos mal, mas falta o resto. Eu sou tudo. Amputassem-me o mindinho do pé e esta Belinha não seria a mesma.


Se o que estamos aqui os dois a experienciar fosse uma verdadeira conversa com segurança de resposta, perguntar-te-ia, com genuíno interesse, onde estás? O que fazes? Ficaste doente? Ainda estás em confinamento? Encontraram uma vacina? E a segunda vaga? Aconteceu? Calculo que não. Espero que já estejas livre, deitado num jardim ou numa praia, com as minhas pequenas memórias na mão, a viver por mim. No início do confinamento, sou franca, até fiquei contente, gostei da ideia da solidão, da calma, do silêncio, de não ser obrigada a “fazer coisas”, a ter um programa decretado para o dia ou a sentir-me mal por nada ter feito. Como é que te posso explicar isto? Senti aquela paz, aquela serenidade inabalável, como quando vamos no comboio em viagem longa, umas horitas sossegados, em que nada do que possamos fazer acelerará o tempo. Só temos de esperar chegar ao destino… Não, não estou de acordo que o avião seja a mesma coisa. Oiço-te daqui. No avião há sempre o medo de cair, o medo de nos esquecermos das instruções do pessoal de bordo em caso de acidente, ou que se esqueçam da nossa sandes ou do café. Não é viagem tranquila. História verídica: uma vez apanhei um taxista cabo-verdiano que me disse que tinha tanto medo de andar de avião, que cada vez que ia a Cabo Verde bebia previamente uns copinhos de grogue para anestesiar as ruminações.


Bom, acho que agora já posso. Estás pronto? Detesto pessoas.


Não me lembro de uma única que não me tenha desiludido. Amizades, famílias, amores... passei a minha vida a perdoar. Descobri que por melhor que fosse o coração do humano, ele se aproveita sempre, a um dado momento, da afabilidade do outro. Quantas vezes fingi não entender o ludíbrio para apreciar até onde chegava a impostura? Pensas que sou paranoica? Uma Jean-Jacques Rousseau em fim de vida nos Devaneios do caminhante solitário? Eis-me, portanto, sozinha na terra, tendo apenas a mim mesma como irmã, próxima, amiga, companhia? Não cheguei a esse ponto.


Detesto pessoas, mas não uma pessoa em particular. Detesto-nos a nós enquanto espécie. Acho que somos uns egoístas e uns burros. Muito fraquinhos, ainda, a nível intelectual. E até considero que estamos em retrocesso. Temos o poder e a vontade de nos destruir a nós próprios. Um nível de melanina um bocadinho mais elevado é o suficiente para discriminar pessoas. Uns têm fome, outros acumulam. Devastamos o planeta que nos abriga. Onde é que já se viu isto? Somos ou não somos umas cavalgaduras, com todo o respeito que tenho pelos equídeos? Serramos com obstinação o galho onde nos encontramos sentados. Uma pulsão de morte coletiva. Passei a ser ateia no dia em que percebi que podia imaginar um universo mais bonito do que este em que vivemos. Deixei de ter qualquer respeito por um suposto ser superior que criou a fealdade estética e moral a que somos submetidos. Não seria uma deusa perfeita, mas tenho a certeza de que faria um melhor trabalho. Perdoa-me a sobranceria.


Intitulei este capítulo “A verdade”, mas não estou a ser sincera contigo, caro leitor. Tem paciência com a Belinha, isto não é fácil para mim. Não poderia nunca ser uma deusa, pequei mais do que ninguém. O confinamento, que começou por ser uma experiência prazerosa, acabou em pesadelo. Não, não estou a falar da minha morte. O silêncio fez-me ouvir vozes, obrigou-me a considerar os murmúrios da minha consciência, dos meus fantasmas, de reminiscências soterradas há mais de cinco décadas. O confinamento foi o momento de olhar para mim com uma implacável precisão, sem espelhos, sem intermediários deformadores da realidade.


O primeiro fantasma do confinamento foi o da minha mãe, a Dona Julieta Terra. Uma mãe maravilha, como eu nunca poderia sonhar ser um dia. Bravou os preconceitos, mandou todos à fava e casou com um “preto”. Ensinou-me a detestar racistas, machistas e fascistas. Não chegou a viver o 25 de Abril. Um desgosto. Teria sido um dos dias mais felizes da sua vida e acalmaria a dor da perda do meu pai às mãos da Besta. Mas se tivesse vivido até hoje, a felicidade sofreria um golpe amargo ao ver fascistas no Parlamento. A minha mãe morreu-me quando celebrou os quarenta e três anos de idade. Eu tinha vinte. Esse marco dos quarenta e três perseguiu-me. Apesar de ser mais parecida com o meu pai, sentia ser feita da mesma matéria que a Dona Julieta. Era um prolongamento não físico, mas espiritual. Ela era o meu porto seguro. Cada vez que vivia algum infortúnio fora de casa, eu sabia que podia regressar para o consolo dos seus braços e para a força das suas palavras. Não sei como ela fazia, mas tinha sempre as mãos quentes, fazendo mentir o provérbio. Ela, sim, tinha um coração que me fazia acreditar que outra humanidade era possível. Tínhamos uma relação fusional. Mas também me desiludiu. Decidiu abandonar-me. Morreria eu também com a sua idade? Com medo, quis viver tudo. Aproveitar os vinte e três anos que me restavam. Quando os quarenta e três passaram, acalmei. A morte deixara de ter data fixa, passei a ser imortal.


Espera, leitor, estou a ser transportada. É hoje o meu funeral. Vou nua. Não se pode vestir os mortos em tempos de Covid. Diretivas superiores. Puseram-me dentro de um saco, fecharam, selaram e puseram-me num segundo saco com um produto desinfetante. E depois puseram-me numa urna e colocaram uma fita isolante. Perdão pelo detalhe, mas das minhas memórias também faz parte a minha morte, não podia deixar de partilhar contigo.


Acredita, eu estava rija para os meus setenta e sete anos. Tinha umas dorezitas aqui e ali, uma diabetes controlada, e, por incrível que pareça, morro com os meus dentes todos. Não tinha cá aquelas placas dentárias horrorosas que nos transfiguram a dicção e fazem passar vergonhas nos piores momentos, porque a cola fixante é de péssima qualidade. Vai parecer-te estranho, mas, sabendo que do meu corpo comido pelos bichos ficará a minha dentição, felicito-me por lhes ter concedido especial cuidado. Se bem que tenho medo de ser incinerada. Espero que a minha irmã tenha insistido para que tal não aconteça, duvido que os dentes resistam ao fogo.


Chegámos ao cemitério de Benfica, vou ser enterrada, estou contente. Bravo, Guidinha da sua irmã. Ai, não posso! Trouxeram um padreco. Estavas a ir bem, mana, estragaste tudo. Sempre quero ver se a minha vontade foi respeitada em relação ao epitáfio. Não sei se vou a tempo de o ver. Imagino que não será hoje que acabam a campa. Eu pedi expressamente, há anos: “Foi Engraçada”. Mais nada. Não quero cá as parolices das saudades eternas. Mas, pensando melhor, agora de cabeça bem fria, é provável que ninguém tenha levado a sério este requerimento extravagante, mas é a lembrança que eu gostava que tivessem aqui da Belinha. Fazer rir, neste mundo; há lá missão mais valorosa! Bom, será a surpresa. Como será surpresa saber quem estará presente. Lembro-me de ter ouvido, na televisão, que só podiam vir os familiares e amigos mais próximos. Eu, no fim da vida, só tenho a minha irmã, o meu cunhado, as minhas duas sobrinhas e os meus sobrinhos-netos. A vizinhança não é família. Pelo menos para mim não era. A não ser o Marco, nunca lhe disse, mas eu tinha um fraquinho por ele, se tivesse tido paciência para desarranjar o meu cómodo quotidiano, talvez lhe tivesse confessado as minhas intenções. Ele é uns anos mais novo. É um bonito viúvo, braços fortes, sorriso brilhante, não sei se é dentadura de origem. Tem ali umas entradas na testa que lhe dão um arzinho de Lino Ventura que é de morrer. Tão basofo! E, digo-te, sempre gostei de sexo, sobretudo de sexo com amor. Sentia falta. O meu corpo não havia deslembrado, apesar de tantos anos de abstinência. E também tinha saudades do namoro, os beijos, os olhares, os passeios de mão dada, os jantares à luz de velas, os presentinhos. Eu sei, achas que é lamechas. Nunca teria admitido isto enquanto viva. Quem não me conhecera mais jovem pensava que eu era uma solteirona empedernida. Havia o rumor persistente na vizinhança de que seria lésbica. Faz comichão uma mulher viver sem um homem e sem filhos. Abaixo o patriarcado, como dizem agora as moças novas. Mas não estavam assim tão longe da verdade. Amei homens e mulheres, mas confesso que o Marco foi o meu último amparo erótico-imaginativo, em atividades solitárias nas noites arrefecidas.


O Marco era de uma ternura irresistível comigo. Mas nunca tive a confirmação se aquele cuidado se dirigia à mulher ou à cliente que eu era. Aparava-me as torradas com um esmero de artista. Tratava-me por Madame Belinha por saber da minha escapada por França. O sonho dele era ver o Moulin Rouge. Quando lhe disse que afinal não valia a pena, que era menos glamour que nos postais, senti-lhe a deceção. Voulez-vous coucher avec moi?, dizia-lhe eu em tom maroto, mas tão baixinho que nem eu própria ouvia. Quando era nova e olhava para os velhos, também pensava que não tinham vida sexual. O que eu estava errada. Tanto nisto como em tantas outras coisas. A sério que gostei de envelhecer. Vivi-o sempre como uma conquista de sucessivas aprendizagens, mesmo nas piores derrotas, e logo eu, ateia, que nunca encontrei fundamentação definitiva para a existência. Descobri, então, um reconforto decisivo no Conhecimento, no surpreender-me com a evolução das nossas ideias, a erosão de certezas, as novas aquisições e as perdas salutares, como a de deixar de me preocupar com os efeitos da gravidade no meu corpo envelhecido de mulher. Até agora, na morte, me surpreendo enquanto aprendo. E com mais três ou quatro anos, o que eu não teria aprendido? Esperando guardar toda a minha cabeça, como guardei os meus dentes. Mas o raio do bicho trocou-me as voltas. Mas acho que prefiro assim do que morrer de acidente, a minha maior fobia. Acordar de manhã, tomar o pequeno-almoço serena, sem saber que é o último, tinha pavor disso. Um atropelamento, cair do escadote, um afogamento, um incêndio, causas exteriores evitáveis. Felizmente escapei. Portanto, não lhe levo a mal, ao compadre, eu sei que não foi pessoal. Calhou eu estar à mão. Por acaso até acho que o apanhei no café do Marco, ou, melhor, foi ele que me apanhou. Aquela desocupada da Leopoldina, que passava lá as manhãs a fazer-se-me ao homem, tossiu-me para cima. No início até pensava que me ia cuspir, tal era o ódio que me tinha por ser eu a preferida. Querias torradinha aparada como a minha? Não há, camarada. Temos pena. Se me estiveres a ler, doce Marco, aqui te deixo esta pequena declaração de interesse romantizado.


As outras pessoas mais importantes da minha vida foram morrendo de forma física ou sentimental. Fossem estas as “Grandes memórias póstumas de Belinha Terra” e contava-te mais uns detalhes jeitosos, querido leitor. Assim sendo, deixo a tua imaginação funcionar para colmatar os buracos. Mas, para ser sincera, não me interessa que saibas o que me aconteceu, não me interessam os eventos, os sítios, as pessoas, parece-me sobretudo primordial saberes quem fui. Quem sou. O Íntimo.


Irra, que o padre não se cala! Volto então aos fantasmas. Estava a contar-te há pouco a importância da Dona Julieta na minha vida. Penso ter sido uma excelente filha, e talvez por isso não tenha conseguido ser mãe. Não consegui ter a maturidade necessária para passar da pessoa protegida à pessoa que protege, entendes? Como te disse, quando a minha mãe morreu, tratei de viver os vinte e três anos que pensava ainda ter de forma despachada. Tive muitos trabalhos, fui costureira, trabalhei em cafés e restaurantes, fui secretária, e aprendi tudo o que sei nas livrarias e bibliotecas onde me deixei ficar até à reforma. Nunca escrevi. Achava que não tinha direito, não tinha exemplos. Não havia heroínas, nem modelos de escritoras que se me assemelhassem e me servissem de inspiração na altura. E, de qualquer forma, lendo os melhores autores que tinha à minha disposição, faltou-me aquela inconsciência necessária para me convencer de que não precisava de ser uma Saramaga ou uma Roussoua para me lançar na escrita. Agora já não tenho nada a perder. Tant pis.


Chegou o Marco. Está tão bonito de fato, tem os olhos vermelhos, quer abraçar a minha irmã, mas, com um gesto firme, ela avisa-o do impedimento, têm de manter a distância. Eu acho bem, sou ciumenta. Afinal, se calhar, eu até era mais que uma cliente. Raio do bicho que me lixou o arranjinho.


Estimado leitor, começo a sentir-me fraca. Será uma segunda morte? Uma morte definitiva? Deixa-me, antes de partir, contar a verdadeira razão da escrevedura destas pequenas memórias póstumas. Até aqui foram só os preliminares. E agora, sim, sinto que somos amigos. Chegaste até este ponto. A minha história não te é indiferente. E por isso agradeço-te. Mas neste instante em que a fraqueza e a premência me dão coragem, gostaria que uma leitora especial tivesse acesso a estas linhas, e é sobretudo para ela que escrevo. Tu podes ficar se assim achares por bem. Durante o confinamento, o seu choro voltou-me ao entendimento. Sem ela não teria escrito nem uma palavra. A outra Julieta, o meu segundo fantasma.

Depois da morte da tua avó, vivi de forma frenética, boémia é talvez melhor palavra. Conheci um homem. Um cabo-verdiano de passagem por Lisboa chamado Francisco. Fiquei grávida, não disse nada ao teu pai, nem sequer sabia como o encontrar na altura. Não me importei, estava contente, eu queria ter filhos, e não precisava de marido para isso. Gostei de tudo, as náuseas, os seios, a barriga a crescer, eras tu a conquistar o teu espaço. Não me importei das más-línguas. A tua avó tinha-me educado para ser uma cabeça erguida. Respeitei-a. A tua tia apoiou-me. Aos oito meses paraste de mexer. A médica disse-me que tinhas morrido. Não existem palavras para descrever até onde caí no desespero. Senti que um fio se havia desligado no meu espírito, deixei de estar conectada à vida. O abismo. No dia marcado para te arrancarem do meu corpo, fui, decidida. Já não suportava a morte dentro de mim. Quando saíste, um choro. A médica tinha-se enganado. Estavas viva. Mas o fio não voltou a conectar-se. O desvínculo. Eu via-te morta. Não te reconheci, no sentido profundo da palavra. Foste dada para adoção. Não disse nada a ninguém. Para todos, tu tinhas morrido no meu ventre. Acabei por acreditar nessa versão da verdade. E eu não podia ser mãe, era feita para ser filha. Sei que me tentaste encontrar. Eu não quis. Nem queiras saber como me arrependo. Durante o confinamento, decidi que quando saísse iria ao teu encontro, que iria contar este segredo à minha irmã. Nada disto foi possível enquanto viva. Faço-o agora enquanto morta. Talvez nunca venhas a ler estas palavras, mas digo-te adeus, filha, e peço-te perdão. Aprendi o mais importante tarde demais.


Desculpa, o barulho da terra lançada para cima do meu caixão desconcentra-me. Sinto-me a expirar. O tempo acabou. Adeus, filha. Adeus, mana. Adeus, Marco. Adeus, querido leitor. Estas foram as pequenas memórias da única e pecadora Dona Belinha Terra.



CAPÍTULO II / EPITÁFIO




AQUI JAZ

D. BELINHA TERRA

1943-2020

ETERNA SAUDADE DE FAMÍLIA E AMIGOS

AMOR DA FILHA

DESCANSA EM PAZ!



 

Doutorada em Filosofia pela Sorbonne, docente e dirigente associativa. Em 2017, 1° lugar do Prémio Literário e de Ilustração Eça de Queiroz com o conto “Céu de Carvão, Mar de Aço”, publicado em “Desafios da Europa” (2018, Livros de Ontem). “O Arroz é Proibido” foi selecionado em 2018 para a 3a antologia de contos do Centro Mário Cláudio. Prefácio “Viagens Anteriores” do 2° vol. “Poetas Lusófonos na Diáspora” (2018, Oxalá Editora). Romance “O Canto da Moreia” (2019, Coolbooks/Porto Editora). “Eu empresto-te a Mariá” em “Correr Mundo – Dez mulheres, dez histórias de emigração” (2020, Oxalá Editora). Conto infantil “Júlia no país das estrelas” (2020, CapMag Júnior).

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