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João Anzanello Carrascoza

Atualizado: 28 de fev. de 2022





REDE COM PAI E FILHA BALANÇANDO




É apenas intuição, mas preciso verbalizá-la: sinto-me mais eficiente que uma voz para embalar as pessoas. Quem se deita em mim e começa a balançar, imediatamente distrai os pensamentos e se desprende do mundo físico. Não tenho vontade própria, é preciso que alguém me agite para gerar o movimento e garantir o seu, o meu, o nosso deleite. Com meus ganchos azeitados, não produzo som algum, sou puro mutismo, inerte ou em oscilante vaivém. É apenas intuição, mas sinto que vivi, tempos atrás, durante o isolamento a que todos foram forçados, tardes que me livraram da condição de manta grosseira. Enquanto a mulher permaneceu encerrada num quarto da casa – ela contraiu o vírus e o combatia a portas fechadas –, o homem e a menina me esticavam para imobilizar as horas angustiantes. Sobre mim se deitavam e balançavam – enlaçando conversas, ele tentando fugir dos temas aflitivos e abrir espaço para os sorrisos, que ela transformava em curtas risadas, graças às cócegas que o meu sobe-desce produzia em seu medo. Com o tempo – daí meu assombro –, passaram a ficar em silêncio, à mercê do meu ritmo mavioso, um braço dele acolhendo a cabeça dela, e os dois, cada um à sua maneira, registrando as cintilações da vida em meio às notícias de tantas mortes. Naquela calmaria, o pai conheceu uma nova filha – e ela idem, no inesperado das descobertas simultâneas –, um entrando mais fundo na existência do outro, e ambos se consolando pelo amor ferido. Notei que perderam peso; o homem não sabia cozinhar, embora talvez (que sei eu?) tenha se esforçado para fazer comida menos insossa e mais saudável. Senti se reaquecer nele a esperança, que nos primeiros dias se dissipava em cinzas frias. Senti a gratidão chegar na menina a um degrau inatingível em outras circunstâncias. Senti, pela primeira e única vez, a singularidade que rege essas criaturas: apesar de ser só um pano estendido pelas pontas, tive um papel, ainda que involuntário, na transformação vivenciada pelos dois. É apenas intuição, mas creio que o homem vai escrever sobre nós. E a menina, sinto, continua me embalando com o pai nos fios de sua memória.



 

Escritor brasileiro, é autor dos romances que compõem Elegia do irmão e Trilogia do adeus, além de diversos livros de contos como A estação das pequenas coisas e Catálogo de perdas. Suas histórias foram traduzidas para o bengali, croata, espanhol, francês, inglês, italiano, sueco e tâmil. Participou do programa de escritores residentes da Ledig House (EUA), Château de Lavigny (Suíça) e Sangam House (Índia). Recebeu os prêmios nacionais Jabuti, Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Fundação Biblioteca Nacional e Associação Paulista dos Críticos de Arte, além dos prêmios internacionais Radio France (Paris) e White Ravens (Munique).

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