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Eduardo Jorge Duarte

Atualizado: 28 de fev. de 2022






E COM OS OLHOS OUÇO OS MORTOS



À noite, falo com os meus mortos. Antes, viviam escondidos atrás das fotografias, mas agora que a morte encontrou a herdade dos Covides, onde pode entrar como quer e ceifar a eito, pessoas e empregos, os mortos aparecem para conversar mais amiúde, de chocalho tapado, apascentando à vontade na planície escura. O mal é estes mortos, ao falarem, acordarem os outros, os enterrados, esses também ainda vivos, ou se calhar ainda não os deixei morrer em paz, na medida em que ainda não permiti que entregassem a totalidade da alma ao Criador. Emaranham-se em mim, estão presentes nos meus passos e nas histórias de faca e alguidar que a minha avó Celsa, sobrevivente a todos e às guerras e dramas russos que travaram, conta sobre eles, à hora da visita, no lar.


Mas agora a história é outra, já que fiquei impedido de ouvir as crónicas da minha avó quando o vírus entrou pelo lar adentro e a fez refém, sozinha e sem direito a visitas, numa espécie de purgatório entre cá e lá, entre mim, o que lhe resta deste mundo, e as memórias, tudo o que lhe sobra do mundo dos mortos. Entretanto, também eu vou escorregando pela vida numa espécie de fenecimento, também eu estou a morrer desde o instante em que o acordeão que era do meu avô, e a quem devo a graça de um ofício, nunca mais respirou, nunca mais soprou um brilho de música naquele teclado de lantejoulas, acabaram-se as atuações, os bailes, os serões, os chás dançantes, da orquestra nem um pio, nunca mais ninguém me disse nada a não ser as contas, o banco, as seguradoras, o gás, a luz, a água, a internet e os meus filhos e os meus mortos reclamando «temos fome».


Os meus mortos aproximam-se aos poucos, vão-se chegando quando estou só, quando não leio ou quando não estou ocupado com outros pensamentos, principalmente aqueles que dizem respeito ao lôbrego estado de saúde em que a minha avó se acha, a sós com ela mesma e sem dar conta do avanço do tempo no calendário, uma ervinha do campo cada vez mais murcha, um olhar que não floresce como nos dias de sol do meu sorriso, no tempo em que tínhamos mais de humanos que de veículos de transmissão, quando ainda nos eram permitidos beijos e abraços.


Vêm do nada (de onde mais poderiam vir os mortos, exceto de um lugar supersticioso que não se pode alcançar?), aparecem a despropósito, basta um dá cá aquela palha para se insinuarem, quantos serão ao todo?, umas vezes uns, outras vezes outros, nas restantes ocasiões, juntam-se, são todos com todos, deixam um suspiro aqui, uma vaia ali, uma palavra além, um assobio de porta enferrujada, instalam-se, andam à paisana por entre as coisas vivas, coçam as costas nas quinas dos livros, engolfam-se por entre os quatro cantos do meu corpo, sacodem-me o esqueleto e levantam-me a pele num vento de arrepios. É a mim que procuram e a mais ninguém, bem se vê. São a minha arqueologia, preciso destes mortos para que o meu passado sobreviva.


Vêm e vão, são balas a zunir, voltam sempre, muitas vezes. E cuidava a gente que descansava em paz, eu e eles, que todos os males que os mataram em vida estavam mortos e enterrados, erro meu, má fortuna, amor ardente. Tantas saudades! Por onde andaram durante este tempo todo, sabe-se lá! Aproveitam as sombras da Lua, o fiar das goteiras, a magreza dos barulhos, o motor do frigorifico aos zumbidos de varejeira, e aí estão eles, impertinentes como o sono, a fazer caretas escuras no meio da sala sem sequer terem sido chamados a acompanharem-me no meu exílio sem êxodo. Põem-se de pé, há mortos assim, capazes de se desenterrarem da cova de memórias onde os guardamos e erguerem-se do silêncio, começam a fazer as perguntas assombradas de sempre, quem és, de onde vens, para onde vais, e eu, primeiro a engolir uma pedra na garganta, depois com a timidez de quem lhes pediu dinheiro emprestado e não pagou, a cabeça em baixo, um apagamento indecifrável num sorriso que também não é meu, onde raio vamos buscar um sorriso quando temos tudo menos vontade de rir?, respondo sou quem sou, não veem aquilo em que me tornaram, olhem para as estantes, o que eu sou também está ali.


Não digo mais do que isto. É quanto basta. Não parece, mas os mortos são muito sensíveis, é preciso ter cautela quando se lhes esfarrapam desculpas. Um deles, que apenas conheci depois de morto, as únicas memórias dele, as teclas gastas do acordeão e uma fotografia descabelada a sépia numa sala distante como a infância, não quis ou não pôde esperar que eu nascesse, muito sério a olhar para mim, tanto aqui como na fotografia, embora neste instante não lhe veja os olhos, aponta para a estante e pergunta, que livro é aquele ali?, procuro e não encontro, este escuro cerrado à minha volta é indivisível, parece uma nuvem de carvão, faço de conta que não ouço, desconverso, não sem antes esconder uma réstia de tosse falsa na dobradiça do cotovelo, coçar uma resteva de barba debaixo do queixo, um som pequeno de torrão a desfazer-se, perdão, disse livro?, e ele insiste, sim, aquele, e eu, qual, o das caveiras na lombada?, esse mesmo, porra, que lento, estava a ver que não, és bom para ir chamar a morte, tu, é sobre quê? Agora, sim, com esta é que me tramou, já cá faltava, se ele se põe a fazer perguntas sobre a minha biblioteca nunca mais saímos da noite, tenho vergonha dos livros que não li e ainda mais daqueles que li e cuja história não me lembro, o esquecimento é uma bela vassoura, varre tudo, não deixa o mais ínfimo grão de pó a conspurcar a superfície da História.


Desta vez, tenho sorte, já li este livro, é um dos meus preferidos, embora me sinta emboscado no meu próprio logro, digo-lhe a despachar que o livro para onde aponta é sobre um rapazinho que encontra um mapa de uma ilha com um X a marcar um tesouro, embarca com uma caterva de homens à procura do ouro e das pedras preciosas prometidos, metem-se numas aventuras e, pronto, é só cavar até encontrarem o cobiçado tesouro. Tem graça, diz, pena não lhe ver a cara, deve estar a rir, tem graça, repete, olha que a porra tem graça, repete outra vez, permanece tudo às escuras, à exceção de um halo de estrelas e de uma unha de lua que se derrama sobre a estante, é só ar preto entre nós, e apesar de nada se ver deve pensar que sou surdo, tem graça, (outra vez?!), eu cavei, cavei... Cavei uma vida toda, belo livro de aventuras que a minha vida foi, oh sim senhor, foi, lá isso foi, é verdade, cavei tanto, que a única coisa de valor que encontrei a refulgir foram pepitas de suor a pingar dos queixos. Se calhar a cruz estava mal assinalada, se calhar foi isso, certa, certa foi a cruz que carreguei às costas, essa quis Deus Nosso Senhor que quem a procurou a encontrasse sem grande precisão de arrelias. Os outros mortos concordam com ele, dizem que sim, mas não se vê, sou eu a supor misticamente, assobiam, vento nas portadas, batem palmas, folhas de árvores e prospetos de supermercado a voar lá fora, às chapadas no silêncio dos sinais de trânsito, e eu interrompo-os, que insolência com os mortos, onde é que isto já se viu?!, interrompo-os, afetuosamente, claro, os mortos são sensíveis, interrompo-os, mas não a tempo, torno ao mesmo, reitero, já não é como era dantes, a força e a destreza de um homem não servem apenas para instrumentos utilizados pela vontade de outros. Não se convencem de maneira nenhuma ou então não fazem caso, assobiam e batem palmas, mais vento nas janelas, mais folhas e folhetos acossados pelas rajadas contra um Stop, que não, que nada mudou, continuo a ser o tempo deles, quem te humilha, o que te oprime, quem te nega a liberdade?, e enquanto os móveis estalam como ossos, insistem no fluxo de consciência, de pouco ou nada servem os meus suspiros indignados, o que andas a fazer da tua vida?, e eu, impaciente, não resignado, embora quase vencido pelo desrespeito, porra, então não veem?, agora andam por aí todos os dias e não veem?, será caso de ter de repetir tudo de novo?!, a minha casa não é Macondo, desculpa, agora não percebi!, não é o quê?!, nada, isto já não é como no vosso tempo, queria eu dizer, o nascimento não é sinónimo de conformação, isto andou, tive mais sorte, o 25 de Abril, a democracia, os hospitais, a escola pública, tive oportunidades, estudei, já não estou como vocês, graças a Deus, calhados para obedecer à enxada e a trabalhar para o dono dela, entre o vosso braço e o braço da sachola tudo igual, onde acaba um e começa o outro?, entre o vosso olho e o dela as mesmas vistas para a fundura da terra, entre vocês, todos em carne viva por dentro, e os sobreiros que esfolaram não há diferenças, isso sim, mas agora a conversa é outra, realço, enquanto olho para as minhas mãos desprovidas das diáclases das pedras, as unhas limpas de terra, e eles que não, que não é verdade, que nada mudou, há de ser sempre tudo igual, que enquanto houver lá fora alguém com míngua daquilo que me foi dado ainda sou eles, que não lhes volte as costas, que não me cale, que resista, que diga não, que não me esqueça de onde vim, se eu soubesse o que sei hoje, nem morto deixaria que me fizessem isso a mim, passe-se a expressão, pois claro, na medida em que estou morto, atira um deles, mais afoito, num murmúrio, os ângulos da voz iguais aos meus, uma aura glacial, não fora o luto carregado à volta fazer desaparecer-lhe as feições e quase posso vê-lo equilibrar o balão cheio de aguardente na cabeça, tirar o lenço de algodão branco da algibeira das calças e desfraldá-lo em movimentos de hélice enquanto ensaia uma dança gaga no rasto de uma canção do meu acordeão, bate palmas, trauteia a melodia e dança, «se o galo cantou, deixá-lo cantar / ele tem seu bico olaré sim sim que lhe vem do mar», a minha avó também cantarolava isto e eu adormecia como um anjo, ele é um nadinha mais desafinado, ainda assim a hélice gira sem parar, o copo aos baldões na cabeça, mas sem cair, sobe, sobe, balão sobe, e não cai, o corpo a desconjuntar-se nos passos do bailado, depois isto já é demasiado para mim, farto-me das vozes e das casquinadas e das danças, enxoto-as, engulo-as num bocejo, boas noites, até amanhã, passem bem e não resta nada a não ser um grande silêncio a mobiliar tudo à minha volta.


Só que os meus mortos são como brinquedos, há sempre um ou outro que se esquiva à arrumação e se queda tresmalhado debaixo de um móvel ou escondido no meio de um instante, oculto no tapete de uma conversa, de uma observação, de uma experiência, ao querer fechar-lhes a porta, deixo a mão entalada e então nesse meio-tempo aí estão eles outra vez, uma emboscada, penso, dantes, quando em criança, não havia mortos, e agora é isto, vêm com a conversa fiada na madrugada, a voz sem escala, brincam comigo, fazem troça de mim, comem-me o coração à colherada, tiram-lhe a tampa e escavam como se fosse um fruto tropical, um maracujá, um kiwi, um ananás, a minha cabeça água de coco, eu um banana.


Por vezes, de modo a ignorá-los, sou eu quem sussurra aquela canção do meu acordeão, canto o refrão, «Maria Latoa, com quem dormes tu? / Durmo com um gato, olaré sim sim que me arranha o …», assobio o resto da música e volto a ensaiar o refrão, faço de conta que não estão ali, mas estão, em vez de os repelir a canção chama-os, e um deles, ou todos, não sei distinguir, a rir num riso de reco-reco, primeiro, depois, a gargarejar umas palavras, sim senhor, tens boa voz para escrever à máquina, e voltam à carga, não és nada, não vales nada, e isto e aquilo e mais um mundo que calhar, és um dos nossos e quem sai aos seus, já sabes, estas coisas pegam-se, bebe um medronho que isso passa, e eu, ora essa, por quem sois, bebo, bebo, sim, e bebo, às vezes uma vontade irrefreável de levar a garrafa à boca, emborcá-la como quem toca corneta e metê-los a todos em sentido, e eles, vá, roupa!, bota carvão! bebe outro, pelo sim, pelo não, bebe, mata o bicho!, e eu já chega!, não queriam mais nada!, bebi um, à saúde, já chega!, não vale a pena insistirem!, tantas exclamações, vocês beberam almudes e olhem como foi, não remediou nada, continuaram com a canga ao pescoço, sempre mais fome que barriga, o bicho é que vos matou a vocês, todos contagiados pela pobreza, e eu agora tão infetado de misérias como vocês, mas, pronto, o que lá vai lá vai e diga eu o que disser, a vocês que se lhes dá?, estão mortos e eu vivo. Estarás?, ouve-se ao fundo, quem terá dito isto? E, logo a seguir, mais silêncio, daqueles com pedras nos sapatos.


Não se sabe de onde vem este silêncio, se é que há diferentes tipos de silêncio ou se é que o silêncio existe verdadeiramente por ser a falta de barulhos ou a soma deles todos. O assunto não é novo, tem até provocado bastante ruído, quase não há interesse nenhum em falar ao mesmo tempo ou por cima do que outros já disseram, só que agora faz um grande silêncio, tão grande é ele, desmanda-se por aí em largura, parece o Alentejo, se eu sussurrar qualquer coisa daqui de onde estou haverá um grito igual ao meu do outro lado do mundo, portanto, qualquer coisa tem de ser dita antes que este e não outro vazio acampado nos ouvidos se cale sem que nunca ninguém tenha falado dele como aconteceu aos meus mortos, cada um deles um nome comum à frente do número de contribuinte, nascem, vivem como formigas no carreiro, para elas é sempre verão, até no inverno trabalham todos os dias sem ouvir cantar a cigarra, são os derrotados da História, sem um gesto ou uma ação significativos para os movimentos da Terra e da Humanidade, os figurantes sem direito a uma única referência no fim do filme, embora haja sempre quem lhes reconheça a suprema importância para o desfecho da trama.


É preciso falar deste silêncio, a boca fala do que o coração está cheio, porque alguma coisa vai fazer este silêncio, ninguém sabe o que estará a preparar, se não fez, está para fazer, tem ar disso, parece aqueles dias estufados, de apertar as goelas, quando se respira como andamos, de gravata com o nó demasiado estrangulado no pescoço, esses dias são inúteis, não servem para mais nada a não ser para agoirar sismos. É que antes dos sismos também se ouve um grande silêncio, há quem diga que a seguir vem logo o barulho do mar, mas isto só é possível na cabeça das pessoas, ou dos meus mortos, que já nem isso são, agora são apenas restos de gente na minha cabeça, os sismos não são búzios, e é do silêncio que aqui se pisa, como se fosse areia molhada, que eu quero falar, é preciso que os pontos desta história tenham as costuras reforçadas com a mestria dos remendos aplicados pela minha avó nos joelhos das minhas calças de criança. Será que o medronho me inundou o entendimento?, talvez, talvez seja isso, ou então, admito, estarei a caminho de ficar insanavelmente fraco do juízo. É o que sucede depois de tantos dias sem saber do mundo, nenhuma nota tirada do acordeão, o fole em apneia, só mortos e livros por perto, podiam ao menos ligar-me do lar a dizer qualquer coisa sobre o estado de saúde da minha avó, da última vez, quando foi?, estava mal, coitadinha, disseram, mas agora não, não abrem a boca, e aqui estou, roendo unhas como se fossem sementes de girassol, olhando o nada, comendo nervos, e um homem, quando se enerva, dá-lhe para isto, lamento, mais esperto é um cão vadio do que um homem bêbado.


Vou à casa de banho, esbofeteio-me com duas conchas de água fria e regresso até onde estava sem aguentar a gelatina das pernas. Dizia eu que este silêncio não é como os outros, não é como o silêncio das manhãs com pássaros ou boleros mexicanos, tangos argentinos, corridinhos, não é como o silêncio dos mortos que há instantes falavam e bebiam comigo às três da manhã, noite escura da alma adentro, o garrafão a chamar a sede como quem diz «lopes, lopes, lopes» pelo gargalo enquanto se esvai em aguardente, e os mortos, insaciáveis, vá, lenha!, bota abaixo! e a cantarem «Maria Latoa, com quem dormes tu? / Durmo com um gato, olaré sim sim que me arranha o …», pese embora agora mesmo me dê a impressão de ter aparecido por aí um morto novo que não bebe, não fala e ainda não sei quem é, apenas se vê um perfume a alfazema, a pão no forno, tem braços e mãos aveludados, abraça e faz carícias, dá beijos, talvez esteja nele a origem deste silêncio todo ou então sou eu quem está mais para lá do que para cá, que o medronho não se contenta com pouco, pede sempre mais, o medronho é de tal modo cristalino e translúcido que vê coisas, quanto mais puro, mais distorce, quem será, pergunto, quem será?, e ninguém responde, os mortos, desde que este silêncio se instalou, também todos calados no meio da sala, num abraço em círculo, como os jogadores de futebol em torno do meio-campo, quando rendem uma última homenagem a um defunto que lhes é caro.


É um vento morno que traz este silêncio, é igual ao que se lê nos livros, bate na cara como uma cataplasma de ervas aromáticas, umas quaisquer, mas podem ser poejos, o chá preferido da minha avó e, por via disso, também o meu. Tenham paciência, só um surdo não ouve isto, é preciso guarnecer este vazio com uma ressonância qualquer, é uma onda comprida, quase deitada numa linha reta, vibra por todos os poros, pois que este silêncio de ver passar coisa nenhuma é diferente daquela escuridão nos ouvidos de quem nasce mouco. Não, este é um sossego tão claro e tão nítido que até se vê debaixo do chão raso desta sombra noturna, é um gato espreguiçado ao sol, não há aqui engano nenhum, este silêncio vê-se claramente visto, pois não é costume dizer-se que a falta de um sentido outros apura? Perfurar esta mudez opaca é impossível, só os cães invisíveis a ladrar a noite toda como parvos lá fora, talvez nem cães sejam, talvez sejam lobos ómega, solitários como eu, acossados e rejeitados pela alcateia, deviam estar entontecidos pela Lua que há instantes parecia a luz fluorescente de uma cozinha, quem acendeu o globo branco lá em cima?, para onde vamos? quem nos guia? isto era o que eu ladraria ao resto da canzoada se fosse cão ou lobo e falasse.


De repente o dia espalha-se por todo o lado, o Sol é um balde gigante de luz morna entornado por aí fora sem se ouvir água vai, o problema é este cansaço, este cansaço esfanicado ninguém me tira, os olhos fecham e abrem, abrem e fecham, tal qual uma lâmpada velha e húmida antes de fundir-se, não se vê nada, agora já se vê, não se vê nada, agora já se vê, a cabeça foge do prumo como o ponteiro de uma bússola, sempre a pender para Norte, e de repente tudo em mim estremunha assim que o telefone toca e rasga de alto a baixo esta calma toda, a paz é uma coisa tão precária, os cães calaram-se, até que enfim, sim, digo ao auscultador, sou eu, respondo, exatamente, confirmo, timbre monocórdico e indolente e a seguir um bocejo mal reprimido que não serve para disfarçar uma certa exasperação.


Silêncio outra vez, mas termina abruptamente, há uma tensão escarpada no ar, parece a corda de uma guitarra, e eu não tenho unhas para este fado, agora ouve-se do lado de lá uma voz nítida, de mosca, não tem nada a ver com aquela outra tonta a zunir no motor do frigorífico durante as noites, embora as moscas de verdade sejam excelentes animais de companhia, sempre fiéis, nem a morte nos separa, não nos largam por nada, nem quando estamos na trampa, esta, insisto, perpassa a casa toda, é maciça, quase que dá para lhe espetar um garfo, traz novidades, a voz, não a mosca no motor do frigorífico, claro, vinda de onde vem só pode trazer notícias agarradas da mesma maneira que as costeletas trazem carne colada ao osso.


Após tanto tempo à espera de qualquer coisa nova, uma notícia importante, um estremeção, veio finalmente o abalo de fazer cair tudo no silêncio, já nada vai ser como dantes, se nada mudar, mudarás tu, houve um dos meus mortos que me disse isto, quando é que eu não sei, não contesto, não recrimino, há coisas cuja compreensão não está ao alcance das palavras, as palavras são pedradas, só chegam até um certo ponto, embora as ditas pelos mortos tenham uma pontaria danada, os mortos acertam sempre, não são de meias palavras, os mortos têm sempre razão e quando morrem nem se fala.


Durante a noite, sem dar por isso, ocorreu uma mudança em mim, qualquer coisa com epicentro no coração ruiu de joelhos enquanto bebia com os meus mortos e o latir ventoso dos cães, lá fora, se engavelava numa algaraviada, dizendo qualquer coisa óbvia que eu não percebia. Eram três da manhã.



 

Eduardo nasceu em Monchique. Formou-se em Geografia e Planeamento Regional, em Lisboa, passou pelo Alentejo, regressou a Monchique, voltou a Lisboa e fixou-se em Viseu, onde reside e trabalha. Diz que não sabe onde estão as coordenadas do futuro, desconhecendo onde estará daqui a um ano; apenas assegura que nunca deixará as raízes da serra algarvia. Tem contos publicados em coletâneas, na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique e no Jornal de Monchique. Publicou em 2017 o livro Montanário e em 2018 Uma Coruja nas Ruínas, um volume de contos. Em 2019 publicou o livro de poesia O Intervalo entre o Raio e o Trovão.

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