top of page
  • Foto do escritormapasconfinamento

Edmilson Mavie

Atualizado: 28 de fev. de 2022




CARTA DE SAUDADES



Seis horas da manhã. É tarde lá fora, mas para o meu corpo é demasiado cedo, tem muito que repousar. Há muito músculo para relaxar. Cancelado o despertador do tempo, é já o alarme da vida que me acorda. Esse barulho que faz na barriga quando falta pão.


Espreguiço-me um bocado, mas na cabeça começa a fazer tempestade e então me levanto. A cama range e denuncia meus movimentos. A minha esposa esfrega o rosto contra o travesseiro, olha-me de soslaio e disfarça o sono. Compreendo o seu olhar de duplo sentido. No primeiro momento, seu olhar mais brando se traduz: “Que pena, amor, você ter que despertar tão cedo por minha causa!” Neste sentido, me lançaria de volta à cama a me deleitar no seu corpo. Mas é o segundo sentido do seu olhar que determina: “Nem pense em ficar aqui. Vá e arranje dinheiro em duplicado, temos dívidas aqui!”



Faço o banho pela metade e visto a camisa pelo caminho, tropeçando nos meus próprios passos. Vou o mais rápido que posso. Ocorre-me uma nostálgica lembrança do tempo em que lucrava nas ruas, tempo em que a baixa da cidade era um lugar de vitórias. Hoje se tornou um campo de combate, de batalhas municipais e de roubos legais. Hoje o figurino mudou, os polícias é que lucram na baixa da cidade. Arrancam sacolas dos vendedores ambulantes e correm para junto dos seus carros e entregam-nas aos comparsas empoleirados nos bancos. Os lesados perseguem, mas os polícias, de volta para eles, pegam nos cassetetes e distribuem pancadas por toda a gente, reiniciando o histórico jogo de polícia-ladrão. Em nome da postura citadina e das medidas de prevenção, começa a dispersão das multidões e de aglomerados. Mas essa recordação se esvai, porque a esta hora já não posso ter o luxo de me comprazer de memórias e, mais ainda, a realidade do que vejo me arranca a última vaga dessas reminiscências.


A paragem está toda abarrotada. Observo com ligeireza as faces desmascaradas de ignorância activa, de desconhecimento profundo e de confiança neurótica. Mas é tudo breve e já não posso escolher nenhum carro, então tomo qualquer um em direcção à cidade. Neste caso, é um autocarro que faz a rota Museu-Zimpeto e, logo ao subir, dou de caras, ou quase de caras, com Bulgari Macuacua, porque, a ser bem dito, dou de máscaras com este homem sentado no assento da janela. De estranho semblante, olhos lacrimosos e tingidos de vermelho lavado, olha de frente, mas só fixa ausências. Uma máscara de pano azul e verde cobre-lhe a metade da face e um elástico preto risca-lhe as têmporas. Traz um boné de cabedal que chega quase ao sobrolho, aliás, só lhe sobra o olho.


Aceno-lhe e sento-me à sua frente, pois do lado onde havia um espaço para o qual ele apontara já estava sentado um rapaz, que veio a todo o gás da porta traseira.


Fico de um jeito pensativo só para não ser incomodado, mas logo oiço o respirar ofegante e, na sequência, uma tosse, e depois umas palavras desacertadas.


– Meu camarada escritor, que bom encontrar-lhe, você, que conversa com as letras, ajuda ensinar essas palavras a se o-o-o-organizar nesta papela – diz, entre tosse e soluços.


Pelo meu ombro suporta-se o peso da sua mão, onde junto pende o referido papel. Recebo-o e Bulgari volta à sua tosse e soluços. Conforme mais intensa a tosse, os passageiros olham-no com desdém e murmuram com sarcasmo, mas ele faz ouvidos de mercador.


Desdobro o papel e percebo que se trata de uma carta escrita para a sua mulher, e começa assim:



À Aniceta Milagre

Meu encantado cantinho de amor.


Amor, eu sinto saudades tuas. É tão estranho para mim quanto para você esta minha revelação. Não consigo acreditar que sou eu que escrevo assim. Eu, machangana do raio, ensinado a ser homem forte que não agoniza com essa mesquinhice, nunca estudei a expressão desse sentimento. Até porque sinto muita dor ao dizer-te isto e ainda desta forma, por meio de um papel A4 riscado com linhas tortas. E o que mais me dói, amor, é lembrar que esta saudade não tem razão de ser. Explico-te assim: eu nunca tive saudades de ninguém, muito menos tuas, meu amor. Mas hoje, de verdade, confesso-te que meu coração está sendo atacado ao contrário e não sei como se sente saudades de alguém que esteja presente, mas é o que sinto. Pode ser um misto de dor e medo, ou pode ser o começo de uma dessas doenças da cabeça que invadem as pessoas desamparadas. Se for de dor, muitas coisas podem-me atrapalhar, porque nesta vida eu só tenho razões de sentir dor, essa que fui ensinado a não mostrar a ninguém; mas, se for de medo, há-de ser do medo de morrer ou de matar-te como essas pessoas que viajam neste autocarro, que mais se parece com meu velório.


Estou num autocarro com o letreiro MUSEU-ZIMPETO, amor. Mas o cobrador, que pára encostado na porta dianteira, próximo ao condutor, além de oferecer um desinfectante nas mãos dos passageiros à entrada, ele aponta o dedo ao itinerário e chama: “Saudades!? Saudades!?” em cada paragem, grita à procura de alguém que vá a esse destino e pergunta: “Mana, não vai? – Meu pai, não vai? – Saudades sentado aqui!”


Ao meu lado, amor, há quem conversa ao telefone e o que consigo ouvir é o seguinte:


“… Quero tanto dormir e acordar nesse outro sítio, esse lugar sem geografia, esse campo de ausências, onde posso ser outra coisa além da humanidade. O que tenho aqui são arrependimentos, sim, mas não é que algum dia eu tenha sido culpado, não. Sou também vítima da crise de políticas sanitárias e de insegurança social; vítima dessa casa sem tecto que se afigura neste lugar e o que tenho, então, são remorsos que não me pertencem, pesares de uma nação. Sou, assim, tudo que falta em tudo. Sou o resultado negativo daqueles cujo sistema renegou o direito ao rastreio e diagnóstico. Sou o ombro dos abandonados e discriminados. Sou a liturgia daqueles que não podem entrar em uma igreja. Sou o calor humano na perda do contacto próximo. Sou a renda dos que perderam emprego, os olhos e a triste melodia dos velórios mudos. Mas também sonho que posso ser a música que dispara nas discotecas encerradas, ou a porta que escancara neste mundo de cinzas.


Há incoerências no que digo, claro, mas a maior atrapalhação está nos ouvidos que me ouvem. Digo-lhe ainda que a pior coisa não é essa, mas sim o que me tornei na manhã do diagnóstico. Tornei-me órfão com vocês ainda vivos, órfão de carinho, órfão de abraços, órfão de beijos. A solidão mais severa não é aquela que nos ataca quando estamos numa multidão? – Pois é, o que percebi, é que a discriminação é a parte mais contagiosa desta doença. Sobem os números no mundo, mas é dentro de mim que ocorrem os casos críticos…”


Neste parágrafo inicia-se um grande e ininteligível gatafunho. Parece mais um desenho pré-operatório. Reviro o papel e nada mais aparece escrito. É nessa altura que oiço Bulgari sorrindo. E logo ele se adianta:


– É por causa daí que está borrado, não é? É porque, quando escrevia, comecei a sentir uma estranha convulsão no braço e me perdi, porém, podes levar esta! É a outra parte da carta – diz, enquanto me entrega outro manuscrito.


Amor, eu tenho saudades tuas, mas aqui neste autocarro ataca-me a nostalgia de um tempo que não vivi, uma estranha lembrança de lugares que não conheço, e é tão transversal esta recordação, que chego a ouvir alguém que parece falar por muitas vozes, dizendo:


“… Estou no autocarro de MUSEU-ZIMPETO, amor, mas me sinto em Muidumbe, na semana passada. Sinto-me em Palma e Mocímboa da Praia, mas não vejo nada nem ninguém. Há cheiros que pairam neste lugar de pólvora, há cheiro de liberdade queimada, de humanidade apodrecida, de medo e pânico espalhados.


Sinto-me em Pundanhara-Manguna, amor, como um fardamento crivado de balas. Há, afinal, uma autoridade perdida que também cheira tão mal! É nisto que me lembro da fantástica segurança de estar neste jardim de metáforas que é Maputo – em um autocarro de Museu-Zimpeto, e transitar pela rua do Sapateiro em direção ao quartel, e, no cruzamento entre a Av. Friedrich Engels e a rua Inclurarino, ver corpos em M’telela, aliás, ver o presidente de calções, atravessando o miradouro de onde se vê a fumaça de Palma na varanda do Índico.


Tenho saudades de ter um lugar, mas o que há, são só (re) assentamentos anónimos. Fugi para não morrer contigo, mas hoje sobrevivo ao medo de morrer sozinho, deslocado, como sou chamado, ou esquecido numa página de um jornal qualquer. Confesso-te, amor, que eu e você somos combatentes de uma guerra na qual somos vítimas…”


Amor, perdoe-me esta dispersão, às vezes parece que é compulsivo. Mas quero esclarecer-te que não posso mais continuar contando estas novidades, escrevo-te mesmo para confessar que tenho saudades tuas e sinto que os estranhos neste autocarro estão a me velar, rumo à minha casa última.


Enfim, quando responderes a esta carta, que receberás de um fulano qualquer ou pelas mãos deste camarada escritor que peço que ajustasse as vírgulas, por favor, não minta dizendo que também tem saudades minhas!


Do seu amado.



Meus caros leitores, penso em rever esta carta e mandá-la para Aniceta Milagre, a legítima esposa de Bulgari Macuacua, mas sempre que me disponho a fazê-lo não paro de perguntar se pode, uma carta de amor, ser escrita assim?


Desde o momento que Bulgari me entregou a última metade da carta com sua respiração ofegante, não mais o vi. Não será que ele acompanhou a multidão que falava qualquer coisa sobre acampar na Ponta Vermelha?



 

Natural de Moçambique, é autor do livro de contos O Homem que Comeu o Hospital. Interessa-se pela escrita de textos narrativos (crónicas, contos e romances), participa em várias oficinas literárias organizadas pela Fundação Fernando Leite Couto, escreve crónicas para o jornal eletrónico Boletim Informativo do HCM. É licenciado em Psicologia Social.

112 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page