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Cristina Vicente

Atualizado: 28 de fev. de 2022





NORMALIDADE AOS PASSOS


Sopesava a vida, encostada à janela do entardecer, enquanto a areia caía ininterruptamente na ampulheta dos dias. Por vezes, esse som sobrepunha-se aos cânticos das relas e rãs, grilos e bichos sonoros daqueles campos visíveis do lugar onde se encontrava, mas que afastados desenhavam e limitavam o horizonte nesse quadrado de tempo.


Concentrava-se, uma vez mais, nos cânticos quase pagãos, hipnotizantes e provocadores, que a inebriavam, fazendo-a ansiar por uma liberdade novamente tolhida. Mergulhou, sem o notar, numa neblina de pensamentos dissonantes, como sucedia nos últimos tempos sempre que pensava nesses malditos porquês que a atormentavam.


Permaneceu assim por mais alguns momentos, esquecida no limbo, até que um estridente e incessante alarme a desligou dessa letargia, retornando-a com brusquidão à realidade.


Um telemóvel tocava numa outra divisão: aquela janela fechou-se e durante algum tempo esqueceu esses pensamentos.




Desde que palavras como pandemia, vírus, quarentena, coronavírus, Covid-19, teletrabalho, zoom e confinamento se instalaram e passaram a líderes de audiências, de conversas e conversetas, guerrinhas, desinformação, trocas e baldrocas, incertezas e dúvidas, não só nacionais como mundiais, os dias deixaram de ter horas normais e o trabalho misturou-se com a vida pessoal, de tal forma que o termo promiscuidade assomava muitas vezes ao pensamento.

Na mesa grande da sala, agora transformada em mesa de tudo, com portáteis pousados e computador fixo ali instalado, espalhavam-se papéis, escritos, amarrotados, rasgados. Folhas brancas, desenhadas e coloridas pela graciosidade ainda infantil dos desenhos. Cadernos, livros escolares, esferográficas, marcadores e lápis de cor, tudo de uma vivacidade estonteante, a contrastar com a sobriedade do bloco de notas, rabiscado com observações e pousado ao lado de uma esferográfica, simples e azul, sem marca especial e de tampa já roída. Sinal de nervosismo ou impaciência. Ou ambos.


Perdera já a noção dos limites, não conseguindo separar os períodos destinados a trabalhar da vida particular. Estava quase na hora de preparar o jantar e as tarefas pendentes da empresa, constantemente pendentes e crescentes no cesto virtual a si destinado, estavam sempre a chegar. Parecia impossível.


O e-mail que insistia em piscar nas notificações fazia prever, àquela hora, que as notícias não seriam muito promissoras. De facto, após rápida leitura, verificou que teria longo relatório para realizar durante parte da noite e haveria reunião online no dia seguinte. O cansaço instalou-se e a letargia fê-la abandonar a tarefa. Recostada na cadeira, fixou um ponto indistinto, apenas para desviar o olhar do computador. Resultou. E o pensamento vagueou, afastando-se.





Meses antes, este cenário laboral seria impensável. Meses antes, o tempo de trabalho era controlado entre picagens; entre entradas e saídas; intervalos para almoço. Saídas para esplanadas. Uma volta até à praia. Um gelado como lanche em passeio pelas ruelas e canais da cidade. Saídas para fotografar. Livros para ler, sentada no banco sossegado do parque. Uma vida normal. Uma vida sempre igual. Uma normalidade sem atribulações.


Mas a súbita indisposição e os três dias de febre baixa que acompanhavam a filha, além da própria quebra de tensão que lhe provocara danos físicos, impedindo-a de trabalhar, fizeram-na decidir pela ida ao médico.


Iniciara, nesse passo, a primeira fase de um inesperado confinamento de imprevisível desfecho.


Na clínica, o panorama era o de um colapso nas reacções, um olhar apagado, a incoerência nas respostas, o tropel imediato da assistência médica e o inexplicável sangue-frio na viagem de ambulância até ao hospital. O primeiro. Aveiro foi o destino.





Ainda observo com espanto a memória dos dias, desta estória que é minha. Sei que, por muitos dias que passem, e por muitos momentos que tenha de aflição nesta vida, nenhum deles poderá ter o peso do tempo e da luta cega e feroz que encetei, com forças que desconhecia, contra uma inimiga que só o nome aterrorizava: meningite bacteriana grave.


Primeiro diagnóstico feito. Tornava-se imperiosa a urgência no tratamento e a mudança acontecia. Nova viagem de ambulância e o Pediátrico de Coimbra à nossa espera. Sentada perto da miúda e acompanhada pela enfermeira que a assistia, segui silenciosa, com os quilómetros de estrada a serem engolidos pela velocidade possível; em simultâneo, afluindo em catadupa, passagens de um livro que lera uns meses antes e que naquele momento se tornavam minhas. Chocou-me a veracidade do momento e as emoções tangíveis na escrita. Tudo continuou por mais alguns quilómetros, naquela metade de tarde de um ameno treze de Novembro, e à chegada apenas uma certeza: a luta por quem amamos.


Desses quarenta e um dias, a que chamo a minha primeira quarentena e, em tom de brincadeira, “antecipada experiência”, tenho várias palavras para traduzir e resumir, por agora e porque assim quero, esse período. Tempo haverá – quem sabe – para alongar o número de palavras e transformá-las em texto.


Habitei o hospital, quase isolada do mundo exterior, tendo a poltrona do quarto como o meu refúgio, o telemóvel a ligação às pessoas. A escrita e a fotografia foram a salvação.


Na verdade, vivo o dia-a-dia da pandemia com cautela, questionando-me quanto ao regresso à normalidade e se isso será realmente possível, não conseguindo afastar a comparação com os momentos do internamento, considerando-os como experiência emocionalmente capacitante para vivenciar os actuais com alguma serenidade não ausente de temor.




Os dias de confinamento continuam no ritmo que lhes permito ou finjo permitir, já que eles próprios me impõem uma rotina que se instala sem vacilação perante o receio, a incerteza e o desconhecido que calcorreiam, lado a lado, a vida no exterior. A ausência da proximidade, do toque, do olhar, do tom cálido de uma voz, do abraço, do calor humano vai minando as pessoas. Destrói. Mata. Dizima afectividade. O vírus ataca o corpo, o isolamento ataca a alma.


O quotidiano torna-se repetitivo e preenchido com o teletrabalho a desoras. O desequilíbrio torna-se parte da organização e o desgaste com o cansaço acompanham-me quase em saturação. Intervalo.





Estou sentada na varanda de olhos fechados. O sol é retemperador, depois de tantos dias de chuva. Aquece o corpo. Aconchega a alma. Afugenta o medo. Sacode fantasmas.


No silêncio de gente que agora reina, apercebo-me do ruído metálico de uma porta a abrir. Levanto ligeiramente a cabeça e espreito. É na casa ao lado.


Fico a observá-la, como exercício de distração e de escrita mental, tentando adivinhar-lhe pensamentos e significado de gestos.


Embrulhada no casaco grosso, sai para a rua. Os gatos ficam à janela, como é costume. A luz magoa-lhe os olhos; fecha-os com força. Aos poucos, o isolamento rouba-lhe a alegria; disseca-lhe o sorriso, transformando essa linha de delicada curva em esgar moribundo.


Atrás de si, a porta fecha-se com lentidão. Encosta ao trinco. Suavemente. Clique.


Avança devagar, olhando e pousando primeiro o pé esquerdo, como se de um campo minado se tratasse. Hesita. Parece pensar. Não se costuma dizer que para ter sorte é com o pé direito? Não há azar. Não está a entrar para algo novo. Está a sair para o trajecto diário de roleta russa. Atravessar, passar e regressar incólume.


Pisar o mesmo chão da véspera. Palmilhado com cautela. Primeiro levemente e depois com outra firmeza. Avança. Contudo, o medo sempre presente. O medo como uma sombra silenciosa, invisível.


Repetir as mesmas pegadas e esperar que ninguém tenha reparado nelas. Que não tenha calcorreado o mesmo percurso por si criado e aparentemente seguro. Sente um sopro arrepiante. Amedronta-se. Tontice. É apenas a brisa dessa soalheira manhã de Primavera.

Afasta-se. Os passos curtos. Normalidade aos passos. Continua sem sorrir e os gatos permanecem à janela.






 

Nasceu na Venezuela e reside em Estarreja, cidade enquadrada numa zona de paisagens privilegiadas da Ria de Aveiro. A paixão declarada pela fotografia acabou por criar uma forte interacção com a escrita e foi assim que começou a colaborar no blogue Fotografar Palavras. Desde abril que tem o seu próprio projeto, Do pó dos dias infindáveis. Irá publicar na editora Minimalista em 2022.

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