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Catarina Gomes





COLAGENS



Quando me preparava para sair do restaurante onde estava a almoçar nesse dia, de máscara posta, como é obrigatório por estes tempos, uma mulher levantou-se de propósito para vir ter comigo e disse-me «tu és a Rita?» Tratou-me logo por tu porque, ao que tudo indicava, me conhecia, eu era afinal, a Rita. «Não, não sou a Rita», «tu não és a mulher do Palma?», insistiu, continuando a tratar-me por tu, como suponho que trataria a mulher do Palma. «Não, não sou a mulher do Palma.» «Mas tu és tal e qual a Rita, a mulher do Palma». Permanecia nela a convicção de que eu era quem dizia não ser. Baixei a máscara cirúrgica, porque percebi que só o meu rosto inteiro a desarmaria: «não sou a Rita, como pode ver». «Desculpe», disse-me tratando-me, pela primeira vez desde que nos conhecêramos, como a estranha que eu de facto era.


O que não retira o facto de que, para aquela mulher, eu ser, dos olhos para cima, tal e qual a Rita, a mulher do Palma. Assim como, pelos vistos, me pareço com a Alexandra: «Alexandra, então, tudo bem contigo, há quanto tempo?», disse-me uma outra mulher já depois do incidente inicial, desta vez numa fila do supermercado, «eu não sou a Alexandra». Ao contrário da conhecida da Rita, esta mulher não insistiu, «desculpe, é que parece mesmo uma antiga colega minha». Seguiu-se, uns dias depois, um outro homem, este estava em dúvida: «Inês, és tu?». «Deve ser engano», esclareci-o. Também não conheço de lado nenhum a pessoa que se abeirou de mim no parque de estacionamento, acabando por recuar, «pensei que era outra pessoa». Pensou que eu não era eu.


Com a máscara a encobrir-me boa parte do rosto tornei-me, pelos vistos, mais reconhecível. Demasiado reconhecível. O que me leva a concluir que, da máscara para cima, eu sou muitas, eu sou outras. Algo que, se me ponho a pensar nisso, me incomoda: porque isso significa que os meus olhos, a sua forma e cor, as pestanas que os rodeiam, a posição e contorno das sobrancelhas que os encimam, o formato da minha testa e a maneira como o meu cabelo castanho emoldura este excerto da minha cara não são suficientemente distintivos. A fracção da minha face que a máscara azul deixa a descoberto faz de mim alguém mais comum do que quando andava pela vida com a cara toda exposta, como era dantes. Agora, parece que eu já não sou apenas eu e que este pedaço de mim tem múltiplas sósias.


O que também quer dizer que, o que me torna inconfundível e única fica por detrás da máscara e que os meus olhos são mesmo só meus se aparecerem completados pelo meu rosto ovalóide e comprido, pelo meu queixo com borbulhas e a pequena cicatriz que me vem da infância, pelo meu nariz abatatado e pelas duas linhas curvas que a idade traçou de cada lado dos meus lábios.


Num mundo em que em quase todos nos passámos a movimentar de máscara, comecei a perceber que o mesmo tipo de confusão me podia acontecer e que, depois daquele primeiro mal-entendido em que, por momentos, eu fui a Rita, a mulher do Palma, abordei com grande segurança uma mulher com óculos de massa pretos pensando que era a mãe de um colega do meu filho, a Sónia, que, ainda para mais, estava no sítio certo, perto da escola. Não era ela. No jardim, cruzei-me com uma mulher que tinha os olhos e a testa tal e qual os da minha prima Maria João, até a vivacidade do seu olhar estava lá. Só quando começou a andar vi que o corpo não era o dela, os passos desta mulher eram arrastados, quase de velha. Há uns dias, acenei a um homem de máscara e boina que seguia em cima de uma trotineta mesmo ao meu lado. Pareceu-me o marido da minha amiga Ana. Ele viu-me, eu vi que ele me viu, mas não me respondeu. Das duas uma, ou não era ele, embora parecesse mesmo ele, ou era ele e foi antipático. Percorri-o de alto a baixo, os mesmos óculos graduados, a mesma barriga. Senti até necessidade de ligar à minha amiga perguntando-lhe se o seu marido tinha andado por aquelas bandas, de trotineta. Disse que sim, era ele. Mas se eu lhe disse adeus e ele não me respondeu é porque, estando eu de máscara, foi ele que não me reconheceu como sendo eu, ou seja, para o marido da Ana, eu era outra.


Depois de todos estes incidentes identitários, houve um dia em que cheguei a casa e quis olhar-me ao espelho sem tirar a máscara. Fitei-me e veio-me à mente a Rita, a mulher do Palma, a Alexandra e a Inês. Imaginando-as, imaginei-me outras da linha da máscara para baixo.


Constato que, nestes tempos, dou por mim a olhar mais fixamente para as pessoas, perscrutando aquelas que me deixam em dúvida, de uma forma que pode parecer intrusiva, até um pouco psicopata. É que quero mesmo ter a certeza de que a pessoa é quem penso que é, que não falo a alguém que afinal não conheço ou, ao invés, que não me escapa alguém das minhas relações, alguém de quem porventura até gosto.


Neste mundo novo, parece que os nossos rostos funcionam como aqueles livros infantis de corpos divididos às tiras que, à medida que folheamos, nos devolvem bizarras criaturas compósitas, um homem de tronco largo com pés de mulher escanzelada de salto alto, ou um animal impossível, o casamento entre a cabeça de um crocodilo e o tronco de um gato, um crocogato, os olhos da Maria João num corpo de velha.


Conhecer pessoas é algo que torna ainda mais evidente esta nova realidade de rostos segmentados. O meu filho entrou para uma nova escola em plena pandemia, não conhecendo ninguém, limitou-se, durante largos meses, a quase só ter acesso aos olhos dos seus coleguinhas. Nas raras vezes em que se viam todos, tiravam as máscaras para comer, estranhavam-se, riam-se da figura uns dos outros de cara nua, chegaram, pelos vistos, à conclusão de que «há bocas ridículas» e «bocas estranhas». Não percebi o que qualificam como uma boca estranha, talvez, nesta fase, baste estar à mostra. Mas, algum tempo depois, percebi que podia não ser apenas isso.


Combinei uma conversa de trabalho com uma desconhecida. Encontrei-me com a Susana, chamava-se assim, na esplanada de um café, falámos de máscara posta, até ao momento em que mandámos vir bebidas, ela um galão de máquina, eu um chá de limão e gengibre. Quando a Susana tirou a máscara, fiquei quase pasmada, desconcentrada, a ponto de ter deixado de ouvir bem o que tinha para me dizer. Não estava à espera daqueles lábios.


Percebi que, com mais de metade do rosto escondida, a nossa mente põe-se a imaginar, completa o rosto por nós, põe-se, pelos vistos, a adivinhá-lo, uma vez que se fiquei surpreendida foi porque tinha criado uma expectativa. O rosto completo da Susana desiludiu-me. E esta foi para mim uma sensação completamente nova.


Quando a Susana tirou a máscara, a primeira coisa que me ocorreu foi que aqueles seus lábios a desfavoreciam. Pensei nesse verbo, «desfavorecer», usa-se para uma peça de roupa, um penteado, não para lábios, que são nossos, serão sempre os nossos lábios, não os podemos mudar. A não ser mentalmente. Os seus olhos eram finos, rasgados, os lábios demasiado grossos e carnudos. Tornaram-se ruído. Que lábios melhor combinariam com aqueles olhos? Até a Susana ter retirado a máscara, nunca tinha pensado nessa questão, de a parte de cima do rosto poder não bater com a parte de baixo. Terá a Susana achado o mesmo dos meus lábios? Favorecem-me ou ficava mais bem servida com outros?


Dou-me conta de que, agora, quando estou num café ou num restaurante, fico às vezes à espera da revelação: a parte de baixo do semi-rosto de quem quer que se sente à minha frente. Uma dessas vezes, enquanto esperava, a empregada perguntou-me «o que é que vai querer?» e eu, ao mesmo tempo que lhe pedia um café em chávena escaldada, imaginei-lhe o resto do rosto que, ao contrário dos clientes do café, nunca chegarei a ver descoberto, permanecerá misterioso.


No fundo, tudo isto que nos está a acontecer, fazendo o enorme esforço de o olhar pelo lado positivo, fez disparar a minha imaginação. Ando por aí a completar rostos e, quando a oportunidade chega, a ajuizar: desnudados, concluo que há pessoas com rostos desarmoniosos a quem a máscara da pandemia até beneficia, como esta jovem à minha frente, tem claramente o queixo demasiado avançado para o rosto, quando volta a pôr a máscara, corrijo-a, desenhando-lhe mentalmente uma metade de rosto que mais a favorece; já o homem de meia-idade com olhos muito brilhantes que acaba de abocanhar um mil folhas fica muito bem com a sua boca ao léu. Tornou-se um jogo meu, ficar à espera do rosto em falta. Gostava muito de parar de jogar este jogo. Estou tão farta deste jogo.


 

Nasceu em Lisboa e é autora de três livros de não ficção. Em «Coisas de Loucos» conta as vidas de oito doentes psiquiátricos a partir de objectos que deixaram para trás no antigo Manicómio Bombarda. Em «Furriel não é nome de pai» revela a história desconhecida dos filhos que os militares tiveram com mulheres africanas durante a Guerra Colonial e que deixaram para trás. Em «Pai, Tiveste Medo?» aborda a forma como a experiência do conflito chegou à geração dos portugueses filhos de ex-combatentes. Os últimos dois livros foram incluídos no Plano Nacional de Leitura. Jornalista do Público durante quase 20 anos, as suas reportagens receberam alguns dos prémios nacionais mais importantes da área. A nível internacional, foi duas vezes finalista do Prémio de Jornalismo Gabriel García Márquez e recebeu o Prémio Internacional de Jornalismo Rei de Espanha.

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