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Ana Pessoa

Atualizado: 28 de fev. de 2022




DIÁRIO DO CONFINAMENTO



quarta-feira, 11 de março de 2020



Lava as mãos, meu amor


Que nunca te falte o ar nem te dê a febre, meu amor. Diz que são esses os sintomas da doença. Não te rias. Já morreu muita gente. Bem sei que a paixão também mata, mas este vírus não é da família dos afetos. Não andes nos transportes públicos. Não vás ao mercado. Não vás a lado nenhum. O vírus anda nas pessoas e também nos edifícios e nas coisas das pessoas: nas malas, nos casacos, nos chapéus. Nas mesas, nas cadeiras, nas maçanetas. Basta uma gotícula, meu amor. Sim, uma gotícula microscópica, uma pessoa nem a vê. É como um segredo, como um sentimento: está dentro das pessoas e ninguém sabe. Por isso, lava as mãos, meu amor. Lava as mãos antes de comeres e depois de espirrares. Lava as mãos se te der para a tristeza ou para a saudade. Lava as mãos sempre que tiveres uma ideia ou um raciocínio. Tão bonitas as tuas mãos, tão brancas e lavadas. Fica em casa, meu amor. Aproveita o silêncio. Lê um livro. Há um certo alívio na clausura, vais ver. E não serve de nada andar na rua, meu amor. Fecharam os museus. Fecharam os teatros. Fecharam as bibliotecas. Parece que agora a cultura anda à pinha, vê lá tu. Antes eram as praias e os centros comerciais, mas agora não. Já ninguém quer saber do mar e do consumo. Mas já não se pode estar nas bibliotecas. Há lá mais gente do que livros, as pessoas todas muito alinhadas nas salas de leitura, até faz impressão, parecem os livros nas estantes, umas a seguir às outras, as bibliotecas não foram feitas para tanta gente. Fica antes em casa, meu amor. Tens tantos livros para ler aqui. E havia também as cortinas do quarto. Há quantos meses querias tratar daquela bainha? Não te distraias, meu amor. E por favor, não toques na boca. Não toques no nariz. Não toques nos olhos. Se sentires uma dor, telefona ao centro de saúde. Uma dorzinha que seja. Um ardor no peito, um sufoco na garganta. Uma náusea. Um sobressalto, um suspiro, uma angústia.


Mas atenção. Não confundas a doença com infeção. Não confundas o vírus com a gripe. Não confundas o ardor com desejo. Não confundas esse mal-estar com um sentimento.




quinta-feira, 28 de maio de 2020



Subir o escorrega ao contrário


Dormi 3 horas e depois mais 3, nada mau.


Pelas 7h e pouco, estou com os três na sala. O mais velho bebe biberão ao meu colo. O mais novo está na cadeira de baloiço e brinca com o meu pé direito. De vez em quando morde-me os dedos. (Au!) O do meio bate palmas. Está na cadeirinha alta.


Faço café. Ouço o mais velho dizer ao robô verde: “Eu quero ser grande e pequenino.”


Vou cortar o cabelo ao meio-dia e meia. Andava tudo tão preocupado com os cabelos, que também marquei. Mas na verdade sinto-me bem assim. Desgrenhada. Desbocada.


Desgovernada.


A verdade é que quase nunca vou ao cabeleireiro.


Uma vez, um amigo manifestou o seu desagrado por eu ter dado um belo corte na trunfa. Olhou para mim, tentou explicar: “É que o teu cabelo fazia parte da tua personalidade.”


Entro no cabeleireiro, desinfeto as mãos, ponho a máscara das cornucópias.


Estou agora em frente ao espelho e acho que as minhas fuças também fazem parte da minha personalidade. Cada vez que ponho a máscara das cornucópias, penso na minha personalidade e acho que não me fica nada mal perder caráter.


Nunca é demais ter menos.


A estagiária lava-me o cabelo. Os dedos da mocinha a arranhar a minha cabeça e o meu ego, a dedilhar o meu cabelo. Massaja-me as têmporas e a nuca. Há que tempos que ninguém tocava na minha cabeça. Neste momento não sou mãe de ninguém. Sou grande e pequenina.


A cabeleireira está grávida. O bebé nasce daqui a seis semanas, coitada. É um rapaz. Que bom, parabéns. Explica-me que tem muita sorte porque o marido vai poder assistir ao parto. “Antes não podia.” Credo. Agora já pode, mas depois não pode sair. Como assim, não pode sair?


Entra com a mulher e sai com a mulher e com o filho. Não pode sair a meio, nem sequer para ir a casa. A cabeleireira explica melhor: Poder, pode, mas já não o deixam voltar.


Fico a pensar que em quase tudo na vida é assim. Podes sair, mas já não podes voltar.


A cabeleireira pergunta-me. “Você tem imensos filhos, não é?” Eu digo: “Três rapazes.” A pergunta do costume: “E não vai tentar a menina?”


Quando anunciei que os gémeos eram rapazes, um amigo disse-me: “Andas a reforçar a sociedade patriarcal.”


Ri-me bué.


Entro no parque. Está quase vazio. Uma miúda tenta subir o escorrega ao contrário. Corre pelo escorrega acima. Nunca consegue chegar ao topo, mas não desiste. Escorrega até ao chão, dá uns passos atrás para ganhar balanço, atira-se ao escorrega, sobe sobe sobe, mas lá em cima começa a deslizar, cai para a frente e escorrega toda esparramada até cá abaixo. Sobe outra vez. Tem oito ou nove anos. Não vejo nenhum adulto com ela. Olho para a miúda a subir o escorrega ao contrário e penso nesta pandemia, penso na sociedade patriarcal, penso no pedregulho do Sísifo a rolar montanha abaixo, penso naquelas coisas da eternidade e do absurdo, e aceito o castigo.


Começo a trabalhar amanhã. Estou tão gorda, tão farta, tão desorientada.


Os gémeos fazem hoje nove meses. As pessoas dão-me os parabéns. Penso nessa manhã de agosto. O médico entrou na sala à hora marcada. Disse “Bom dia” e cortou-me a barriga. Não foi assim um grande feito.


Sou uma autêntica fraude. A escrever. A traduzir. A amar. A viver. Até a parir. Não dou uma para a caixa.


Felizmente cortei uns centímetros à minha personalidade. Estou ligeiramente mais leve. Existo menos. Durmo menos. Vivo menos. Mas lá vou subindo o escorrega.


Vou rematar este texto com uma frase do meu querido sogro: “Até aqui chegámos nós.”




domingo, 25 de outubro de 2020



O quê? O quê? O quê?


As mãos sempre tão secas. Os dias tão iguais, que mais parecem o mesmo dia.


Um único dia repetido. Com ligeiras diferenças. Num dia chove, no outro não. Num dia dói-me a garganta, no outro a tristeza. Mas os dias são essencialmente iguais aos anteriores e aos que hão de vir.


Espero que este não seja o meu castigo. Um ciclo eterno de dias sempre iguais. Coloco hipóteses: talvez tenha caído num buraco temporal. Talvez os deuses me estejam a dar uma lição. Talvez eu tenha de aprender qualquer coisa fundamental sobre a vida antes de poder avançar no tempo.


Imagino-os no Olimpo, muito bem sentados na sua sala de professores, desiludidos com tudo isto e, em particular, com a minha existência.


Visto os meus filhos, alimento-os, empurro o carrinho para fora de casa. Presto atenção.


Vem aí o inverno. Folhas no chão, nuvens no céu.


A sensação de que falhei em tudo. De que vou falhar sempre. De que ainda não aprendi qualquer coisa fundamental. Mas o quê?


Imagino os meus pensamentos a fazerem eco no Monte do Olimpo.


O quê? O quê? O quê?


Há muito tempo que não vejo nada ao longe. Há sempre um prédio à frente, um carro, um guindaste. É difícil pensar sem ver.


É difícil pensar sem respirar também. Estou farta destas máscaras.


Imagino a praia do Guincho. Imagino o vento. Imagino que entro na água e fico para ali a boiar. A boiar. A boiar.


Tenho saudades das gaivotas. Tenho saudades do mar. Imagino o eco de tudo isto no Monte do Olimpo.


Mar mar mar. Guincho Guincho Guincho.


Não sei falar com os deuses. Não tenho jeito para a fé. Não tenho jeito para a oração.


Voltei a ouvir podcasts. Os outros fazem-me muita falta.


E ainda quero aprender qualquer coisa fundamental.


O quê? O quê? O quê?


Por Zeus, o quê?




Contágio, ilustração de Sara Bandarra



 

Ana é autora de livros infantis e juvenis, todos eles editados pelo Planeta Tangerina. Os seus livros estão também publicados no Brasil, no México, na Colômbia, na Sérvia, no Chile e na Holanda. Mereceram distinções por instituições como a FNLIJ (Brasil), o Banco del Libro (Venezuela), a Biblioteca Internacional de Munique (Alemanha), entre outras. Em 2020 estreou-se com Bernardo P. Carvalho na banda desenhada com Desvio.





Sara nasceu em Aveiro, é designer (ESAD), professora e ilustradora. Participou em diversas exposições individuais e coletivas. Tem organizado oficinas de ilustração. Os seus trabalhos foram reconhecidos em eventos como o Encontro Internacional de Ilustração de S. João da Madeira, a BIG - Bienal de Ilustração de Guimarães, e o Piip - Prémio Internacional de Ilustração em Porcelana 2019 (Vista Alegre/Tcharan Editora). Publicou alguns projetos de ilustração. Em co-autoria com Ana Pessoa lançou em 2018 o livro-acordeão As Casas Abandonadas. No prelo está já um segundo livro das duas autoras: O retrato inacabado de mulher dentro de casa.

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