CARTAS DO CONFINAMENTO
CARTA 1.
Leiria, 19 de maio de 2020. Querida Ana, Espero que esta carta te encontre bem e de saúde.
Há muito que te não dava notícias. Talvez por falta de tempo ou de inspiração nestes dias esquisitos.
Estou sentada na relva à beira do nosso rio Lis. Enquanto escrevo, um melro, empoleirado num velho amieiro, canta-me as cantigas do seu último álbum de originais. É um belíssimo concerto. Quem me dera poder transmitir-to, fazendo das minhas letras uma pauta musical.
Tu sabes o quanto gostamos de música. Lembras-te de como pulávamos nos festivais, empurradas de todos os lados por fãs eufóricos e transpirados?
Que saudades tenho desses claustrofóbicos encontrões. Terão eles regressado ao futuro, onde te encontras?
Aqui, para além dos concertos dos meus melros amigos, apenas me posso deleitar com o som medíocre saído do telemóvel.
Nunca pensei que uma pequena janela luminosa pudesse ter tanta força nestes dias. E nunca pensei fartar-me tanto dela.
Mas tenho boas notícias para te dar. Tu, que gostas de palavras e trocadilhos, toma lá a novidade: desconfinamento.
E esta, hein?
É a nova realidade a exigir palavras novas e a (a)dicioná-las (de dicionário – trocadilho fixe, não é?)
Hoje o dia está muito bonito. Estou certa de que adorarias estar aqui sentada nesta relva indisciplinada, salpicada de flores livres. Também me sinto uma delas, agora que tirei a máscara e que posso estar um pouco à vontade. Não há melhor distanciamento do que este. Mais uma palavrinha da moda Primavera/Verão 2020 que se acompanha do acessório “social”. As duas juntas formam uma equação alfanumérica a que se juntam os números 1,5 – 2. Falo de metros: os que nos devem separar de outro ser humano.
Parecemos agora uns assaltantes de máscara no rosto, olhar sinistro e pistolas de borrifador antibacteriano em punho, como que ameaçando: “Mãos no ar, isto é uma pandemia”.
O melro está a dizer-me que muita gente não está a cumprir o distanciamento. Tem muita razão o senhor Turdus merula. Vê-se por aí muito Chico Esperto a desafiar o desconfinanço (esta é da minha invenção). Grupos e grupos, muito próximos, colados em fita-cola Covid 19. Isto vai dar merdula.
Não os condeno totalmente. É como se estivessem a criar uma corrente de solidariedade e amparo após os tempos de prisão. Uma espécie de ex-confinados anónimos que agora expelem as suas angústias e experiências. Parece que até receitas trocam. Nesta quarentena, criaram-se diversas padarias e pastelarias domésticas. Tanto e tão bom cheirinho a pão saído do forno acompanhou os meus passeios higiénicos no bairro.
Olha, Ana, cá vamos vendo como corre este distanciamento medido a fita métrica.
O certo é que, com tudo isto, temos muito tempo para aprender e refletir sobre o que verdadeiramente importa. Assim mo disseste um dia e sublinho cada palavra.
Oxalá cheguemos ao futuro onde estás. A propósito, como se passam os dias por aí? Um abraço distanciado, Ana do Presente.
CARTA 2.
Leiria, 11 de abril de 2021
Querida Ana,
Há muito que ando para te escrever e há muito que não recebo notícias tuas.
Espero que esta carta te encontre bem, onde quer que estejas, aí no futuro.
Qual será a distância temporal e física entre o presente e o futuro? É possível medir? Na verdade, vejo-o – ao futuro – cada vez mais longínquo. Será que as distâncias aumentam quando o presente é incerto? E qual será a medida de tempo entre o presente e o futuro próximo?
Normalmente, é mais fácil medir a distância entre o presente o passado. Passado é passado, um conjunto de factos, com evidências marcadas. Mas agora, vivendo mais um confinamento demorado, até o passado questiono. Parece que já se foi há muito o “velho normal” – sim, continuo a preferir o velho –, estando ele a ganhar pó numa espécie de prateleira da intemporalidade.
E se a memória nos atraiçoou? Prefiro acreditar que não. Afinal, por que se nos acelera o bater do coração quando ela nos devolve a imagem e a emoção dos encontros e dos abraços?
Parece que o ano de 2020 foi apagado do calendário, ocupando um vácuo na memória.
Mas existiu, e os factos são verdadeiros e negros. Uma escura realidade disfarçada de sorteio que, com os olhos vendados, escolhe aleatoriamente pessoas, sem critérios prévios.
Bem, mas tenho boas notícias: as esplanadas reabriram. Já nos livrámos do castigo da venda ao postigo e podemos novamente lagartear ao sol. É escusado dizer que as esplanadas estão cheias de pessoas e, por este andar, de Covid. O tal metro e meio de distanciamento de que te falei na carta anterior tem encolhido com o calor.
Não, Ana, sabes que não sou alarmista; mas, em tempos de certeza imensurável, a memória foge-nos inevitavelmente para os tempos em que estávamos juntos, nos tocávamos, nos roçávamos, e estava tudo bem. Há um cansaço de distanciamento que nos põe em negação e em conflito interno.
Nunca a tão repetida frase “éramos felizes e não sabíamos” fez tanto sentido. Digo eu, que só vivi um bocadinho da história do mundo.
Tu, que já viveste um pouco mais, conta-me, como se vivem os dias aí no futuro? Ganhámos juízo?
Um abraço distanciado,
Ana do Presente.
CARTA 3.
Direção-Regional das Incertezas do Futuro
Departamento do Futuro a Deus Pertence
Exma Sr.ª Ana do Presente
Leiria
N/ Referência: 0187587248457424/DRIF/DFDP
Data: 36/13/+00
Assunto: Destinatário não identificado
Ex.ma Senhora Ana do Presente,
Acusamos a boa recepção das V. missivas, as quais nos mereceram a melhor atenção.
Na sequência do envio das mesmas, cumpre-nos comunicar que, lamentavelmente, não nos foi possível dirigi-las ao seu destinatário, a Senhora Ana do Futuro, já que esta se encontra em parte incerta.
Por indicações do Sr. Diretor Regional das Incertezas do Futuro, não é da competência dos serviços do Departamento do Futuro a Deus Pertence indagar sobre o paradeiro do referido destinatário.
Caso seja do V. interesse, podereis remeter um ofício à Direção-Geral das Especulações do Futuro, expondo a V. situação.
Na certeza da melhor compreensão e augurando os melhores sucessos para o Futuro de V. Ex.ª, subscrevemo-nos com elevada estima e consideração,
Pl’o Departamento do Futuro a Deus Pertence
Nasceu em Pombal. Formada em Comunicação Cultural, Museologia e Intervenção e Animação Artísticas, exerce a sua atividade profissional como conservadora de museus desde 2005. Mantém, paralelamente, a paixão pelas artes performativas, integrando o Nariz – Teatro de Grupo, em Leiria; pela escrita, fazendo parte do coletivo editorial Minimalista, junto com 11 autores; e, em diversos projetos, pela fotografia.
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