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Ana Gilbert

Atualizado: 28 de fev. de 2022





NÓS



Não sei o teu nome, nunca tive coragem de perguntar. Mas somos vizinhas. De vida. Habitamos a mesma pele, ainda que muitos metros de tecido esgarçado nos separem. Não sei onde estás; passo pelos lugares de costume e vejo somente a tua ausência. Em que calçada te sentas agora? O que andas a anotar nos teus cadernos rasgados? Queria tanto ler os teus cadernos, as tuas palavras. Ou seriam desenhos? Talvez sejam rabiscos, formas apenas sugeridas, inexpressivas para mim, vitais para ti. (Sonhei com elas.) A tua história latente à espera de ser pronunciada. E sofreria com a minha incapacidade para decifrar-te.


Sinto falta do teu aceno cheio de anéis, das roupas sobrepostas que te agasalham em dia de calor intenso e que são como uma proteção em camadas de algo muito delicado que carregas à flor da pele. Das sacolas que transportam o teu mundo, onde cabem os teus sonhos; a tua casa móvel. E do teu sorriso, conquistado com a troca diária de olhares tímidos. Nunca tive coragem de parar para te fotografar, de te pedir permissão para escolher o melhor ângulo, aquele onde a tua beleza desabrocha com força. Permissão para congelar a tua pulsação no tempo; para tocar-te com o meu corpo feito lente.


Revejo a coreografia sinuosa dos que se cruzam contigo, os desvios de olhares e passos que demarcam territórios de existência, e interrogo-me sobre qual caminho me levaria a ti. Não sei onde estás e desconfio que te posso encontrar em algum recanto em mim. Tenho medo de me sentar ao teu lado e ver o mundo que se descortina à altura dos teus olhos. Medo daquilo que carregas no corpo (ou na alma?) e que, pressinto, me inundaria ao primeiro toque; de inocular-me com a tua humanidade e ser mortalmente ferida na minha arrogância. Tento, em vão, proteger-me com a distância segura da anestesia.


Penso que a nossa conversa seria feita de desconforto e gestos contidos; atravessada pelo cheiro desagradável do abandono que fica como um rastro atrás de ti e que não suporto aspirar. (Sentirias o meu cheiro asséptico de sanidade?) E a nossa despedida, um misto de alívio e dor.

Não sei onde estás; não sei o teu nome. Hoje eu perguntaria?



Linhas sem fuga
©Ana Gilbert


 

Ana Gilbert nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. É psicoterapeuta, pesquisadora e fotógrafa. É um dos membros fundadores (e autora) da Editora Minimalista, em colaboração com escritores de Portugal. O seu envolvimento com imagens, palavras e imaginação levou-a a uma interseção entre fotografia e literatura, trabalhando com imagens como narrativas. Depois de muitos anos de publicações académicas, dedica-se à escrita ficcional. Tem como proposta criativa constante a transformação de palavra em fotografia e fotografia em palavra, em parceria com escritores e fotógrafos: fotografa palavras (as próprias e as dos outros); escreve fotografias. Administra o blog Sutilezas do Olhar e é colaboradora no blog coletivo Fotografar Palavras.


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