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Agnaldo Bata

Atualizado: 28 de fev. de 2022





NAS MARGENS DO EXTREMO EGOÍSMO



O ruminar do meu ventre anuncia o fim de mais um dia que passou despercebido, menos para o álcool que foi ao encontro da minha corrente sanguínea e, uma parte, para o vaso sanitário, o único local para onde me posso deslocar sem pedir autorização. Olho pela janela da quina do meu quarto, a única válvula de escape para o mundo. Antes da pandemia, eu tinha um emprego, mas foi classificado como não essencial e cancelado e, junto com ele, a única vida social que eu tinha. O estreito espaço de nove metros quadrados serve de quarto, sala, escritório, biblioteca, armazém, guarda-roupas, sala de banho, sala de lazer… Disseram-me que são medidas universais. Talvez sejam, mas certamente que essa universalidade não toma em conta uma pandemia que colocou em causa o próprio universo.


O sol não está lá fora. Não sei se hoje, se esta semana ou este mês esteve lá, não sei. O céu é cinzento, sem vida, as árvores estão em pé, totalmente nuas, em pura sintonia com os semblantes minguados dos transeuntes que preenchem a rua lutando contra uma pandemia em pleno inverno. Como é triste o hemisfério norte. Há seis meses que andamos privados de sol, quando no sul, de onde eu venho, ele existe em fartura.


Vejo, pela janela, uma escola e, à sua volta, vários edifícios de cerca de cinco andares de altura e os telhados oblíquos. Mais ao fundo, totalmente a contramaré, há um edifício, mais alto que os outros, com exactamente 15 andares, e deste meu tubo de escape visualizo oitenta e cinco janelas, maioritariamente com os volets fechados; e, para nutrir a imagem, visualizo a rede eléctrica que alimenta as linhas principais da rede ferroviária do norte. Vejo também um jardim, cinco viaturas estacionadas há cinco dias, e hoje chegaram três novas viaturas, duas de cor escura e uma de cor encarnada. Sou capaz de descrever esta imagem mesmo de olhos fechados. Se isto não acabar logo, em breve estarei a contar as estrelas no céu e não vou parar antes de terminar a contagem.


Hoje tenho, ao pé da minha janela, visitantes que, justamente, vêm zombar de mim, da minha privação de movimento; eles têm a sorte de voar, hoje são eles que estão livres e nós, os ditos sábios, engaiolados. Já não bastavam os que, no início do confinamento, encheram as cinco grandes gares parisienses e foram-se embora para as províncias; e nós, os estrangeiros, com as fronteiras seladas a aço, fomos condenados a ficar e a tomar conta da cidade, ombreando com a loucura que circunda os nossos estreitos leitos.


Invejo as aves que hoje me vieram visitar. São lindas, de pluma bem cuidada e reluzente. As baixas emissões de dióxido de carbono devem, certamente, fazer-lhes bem. A cada minuto, uma espécie diferente tenta pintar este céu cinzento. Viajam para o sul, fogem do frio do norte que os priva de comida, buscam as belas praias tropicais onde o sol é abundante. Saudades tenho do sul, lá nos trópicos, onde eu nasci, onde o sol é uma dádiva diária, e hoje percebo a maravilha que isso é.


Invejo as aves porque elas são livres. Nós, os supostos seres sapiens da cadeia alimentar, no início da noite temos de estar todos trancados, e as aves, para se vingarem de anos de aprisionamento, voam livremente noite dentro sem que ninguém lhes exija qualquer atestado de deslocação. O homem pensa que dita o tempo, mas o tempo encarrega-se de ditar o curso dos acontecimentos. As aves atravessam fronteiras cantando em harmonia, tudo aquilo de que sentimos falta nesta época onde cada um se tranca em sua casa tentando a todo custo garantir a continuação da sua vida.


Ainda olhando o mundo por esta única porta pela qual sou autorizado a ter contacto com o exterior, vejo uma criança que se distancia dos seus pais, um homem tenta segurá-la e restitua-la na direcção dos seus protectores, e estes, num impulso, revoltam-se contra o homem. Que ousadia foi essa de tentar tocar no outro em plena pandemia? Não devemos ver, tocar, abraçar ou partilhar um sorriso livre com quem quer que seja. Devemos guardar todas essas preciosidades para nós. Há acto mais egoísta do que esse? Não poder partilhar com ninguém até o que nos é grátis? Tenho consciência de que é por uma razão altruísta, porém, na sua forma mais egoísta. Não foi a pandemia que pariu esse egoísmo, ele sempre esteve lá, no gene humano, o confinamento apenas o transformou em matéria. Quando tudo isto acabar, quando as máscaras forem ao lixo e pudermos voar como os pássaros, conseguiremos, nós, libertar-nos deste espírito egoísta?


Canso-me do mundo, retorno à minha cama que, durante o dia, serve de guarda roupas e sofá e, quando o dia se vai, recupera o seu estatuto de cama. Ah... gostaria, hoje, de ser um pássaro, de viajar para sul, para a minha casa, para os lindos campos rurais onde o recolher obrigatório é uma miragem. Hoje, penso que a cidade foi o maior falhanço da humanidade.


Quando o sono vem finalmente visitar-me, oiço o tocar da porta. Alguém me procura. Como assim? Não saberá ela ou ele que não devemos ver-nos uns aos outros? Aos solavancos, chego à porta. É um dos poderes que o álcool nos dá. Abro a porta e ninguém está lá, apenas uma embalagem com alguns produtos alimentares. Envergonhado, sorrio. Talvez o egoísmo não tenha triunfado.


Paris, Março de 2021



 

Nasceu no Chamanculo, arredores de Maputo. É licenciado em Sociologia, escreve crónicas, prosas e peças teatrais. Em 2015 foi premiado no Concurso Literário dos 40 anos do Banco de Moçambique na categoria de Romance com a obra Na Terra dos Sonhos (Alcance Editores, 2017). Em 2018 foi distinguindo com a menção honrosa na 2ª edição do concurso Literário INCM Eugénio Lisboa com a obra Sonhos Manchados Sonhos Vividos. Escreve para jornais, revistas e tem participação na antologia Contos para ler em casa (revista Literatas, 2020). É estudante na Universidade Paris-8, na França.

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