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Sérgio Tavares

Atualizado: 28 de fev. de 2022




A DITADURA É UMA PANDEMIA


Depois de seis anos sem nos falar, meu pai me telefonou no final de março. Disse que viria à São Paulo, e perguntou se poderíamos nos encontrar para um almoço ou um café.


Não era incomum esse sumiço do meu pai. Eu só fui conhecê-lo pessoalmente aos 10 anos de idade. Ainda assim, nossa convivência foi marcada por uma série de distanciamentos. Era minha mãe quem tinha a função de nos aproximar. Quando ela morreu num afogamento, esse laço se desarmou indefinitivamente.


Apesar disso, aceitei encontrá-lo para um café. Meu pai me pareceu mais cansado. Escolhemos um bistrô e nos sentamos numa mesinha de dois lugares. Na parede oposta, uma televisão noticiava o aumento do número de infectados pela covid-19 e suspeitas de que medidas de isolamento social seriam tomadas. Foi o que conduziu nossa conversa, naturalmente recheada de silêncio. Meu pai estava temeroso, porém o centro de promoção humana para qual prestava assessoria necessitava de seu conhecimento. Eu tomei um cappucino e ele, um café preto. Depois que paguei a conta, nos despedimos com um aperto de mão.


Dias depois as primeiras mortes foram confirmadas, e o governo estadual determinou que se fechassem locais com potencial de aglomeração. Na sequência, a quarentena entrou em vigor. Por algum motivo, pensei no meu pai. Me perguntava se ainda estava em São Paulo ou tinha ido embora, pois não me dissera quanto tempo ficaria na cidade. Eu tentava ocupar a mente com outra coisa, mas o pensamento sempre escapulia. Então, depois de muito desconsiderar a ideia, telefonei para ele.


Descobri que estava hospedado num hotel porque o voo para seu estado tinha sido cancelado e não havia previsão de reagendamento. Disse estar preocupado, pois não tinha se programado para despesas extras. Então, não sei se por dó ou por mero impulso, perguntei se ele não queria ficar no meu apartamento enquanto a situação não se resolvia. A comunicação se perdeu num breve vazio e, certamente para evitar um constrangimento maior, meu pai concordou. No dia seguinte, fui recepcioná-lo na portaria do prédio.


Meu pai entrou no apartamento, arisco, sem saber onde pôr os pés. Trazia apenas uma mala, dessas de puxar com rodinhas. Indiquei o quarto em que ficaria, um cômodo com guarda-roupa, cama de solteiro e criado-mudo, que deveria ser da empregada que nunca tive. Antes, porém, pedi que tomasse banho e pusesse uma roupa limpa, pois essa era a recomendação sanitária. No banheiro, havia uma toalha e um sabonete só para ele. O xampu, se precisasse, poderia compartilhar o meu.


Meu pai assentiu feito uma criança obediente. Tomou banho, ensacou a roupa e nos reencontramos na sala. Enquanto penteava o cabelo, ele defendeu que não queria passar por hóspede, se oferecendo a participar dos afazeres da casa e rachar os custos das compras. O tranquilizei, dizendo que meu emprego me fornecia um cartão alimentação, embora não fosse mau termos refeições caseiras, pois minha dieta se resumia basicamente a congelados. Bastava que ele fizesse uma lista do que precisava, que eu encomendaria no aplicativo do mercado, com entrega por delivery. Meu pai concordou, e ficamos combinados assim.


Nas manhãs seguintes, o perfume do café fresco e da margarina passou a me tirar da cama. Meu pai deixava a mesa posta, enquanto se ocupava com uma tarefa doméstica ou fumava na varanda. Logo que eu me acomodava no escritório improvisado na sala, para as reuniões on-line do trabalho, ele ia para cozinha preparar o almoço, prevendo uma sobra a se requentar para a janta. Por conta da folga do horário, era o único momento do dia em que dividíamos a mesa. Eu ligava a televisão no noticiário, de modo a ter um escudo sonoro a nos preservar da mudez embaraçosa de estarmos um diante do outro.


Foi nesses encontros silenciosos que passei a notar seu incômodo quando era transmitida alguma fala do atual ocupante da presidência da República. Mudanças na expressão, gestos desordenados e perda imediata do apetite. Aconteceu na ocasião que o ocupante declarou que a covid-19 era apenas uma gripezinha, depois quando zombou que brasileiro tinha a imunidade de ferro, pois pulava em esgoto e não acontecia nada. Então, no final de abril, ao responder sobre o disparo do número de mortes com a grosseria de que não era coveiro, a frase foi seguida pelo tombo dos talheres sobre o prato. Meu pai sussurrou um pedido de licença, levantou-se educadamente e se retirou da mesa.


Minutos depois, quando atravessava o corredor em direção ao banheiro, o vi, pela fresta da porta, sentado na beirada da cama. Cabisbaixo, tocava o celular e chorava.


Dormi com aquela imagem na cabeça e, no dia seguinte, depois de tomar café, fui até a varanda e lhe avisei que estava de folga e faria o almoço. Voltei ao quarto e, na surdina, assisti, no Youtube, uma receita de filé de frango à parmegiana com batatas chips e arroz branco. Servi à mesa e nos sentamos. Não liguei a televisão. Estava realmente saboroso, e meu pai elogiou. A mudez naturalmente se estabeleceu, até que, após algumas garfadas, olhei para ele e disse, Sou gay, pai. Sempre quis lhe contar sobre minha vida, sobre minhas escolhas, mas você nunca estava presente. Nunca havia o pai com quem eu pudesse me confidenciar.


Diante de mim, ele completou lentamente a mastigação e, depois de engolir, respondeu, Eu não sou seu pai. Seu pai desapareceu antes de você nascer, era meu irmão.


A notícia me deixou em choque e, enquanto sentia um gelado me subir pelas pernas, ele prosseguiu. O nome dele era Cláudio e fazia parte de um movimento revolucionário, que pegou em armas durante a ditadura. Numa ação de banco, ele foi baleado e preso pela polícia do exército. Procuramos em hospitais, delegacias e IMLs, e nunca o encontramos.


Apesar da garganta bloqueada, consegui murmurar. Por que mentiu para mim esse tempo todo?


A gravidez da sua mãe estava nas últimas semanas e ela não tinha condições de caminhar. Eu fiquei encarregado pelas buscas. Era incansável e fazia muitas perguntas. No dia que percebi que estava sendo seguido, aconselhei sua mãe a se esconder e fui trocando de cidade. Tinha notícias de que você e ela estavam bem, de que ela havia conseguido um emprego. Mas aí você cresceu e começou a perguntar sobre seu pai. Eu havia me estabelecido, começava a minha própria família, mas sua mãe me implorou. Disse que você era apenas uma criança, que não merecia pagar pelo passado, então eu aceitei o papel.


Mas você nunca conseguiu ser meu pai.


Eu tentei. Por você, pelo meu irmão. Para tapar a ausência causada por um tempo que estava certo de que nunca iria voltar. Mas voltou. Com os mesmos ideais de opressão, com as mesmas práticas para propagar o ódio, a vilania, a morte. A diferença agora é que eles têm um vírus a favor. Se antes cooptavam agentes para confinar, torturar, assassinar e desaparecer pessoas, agora um único agente invisível faz tudo isso, de modo muito mais eficaz, em escala nacional. Os maus venceram. O genocídio é a vitória.


Ouvir essas palavras foi realmente duro, em contrapartida me livrou de cobranças que equivocadamente eu trazia para mim. Meu pai continuou a morar comigo durante mais alguns meses e, em novembro, quando o governo considerou que era possível realizar normalmente eleições municipais, ele voltou para sua cidade e para sua família real. Eu estive errado a todo tempo sobre minha vida, assim como todos aqueles que acreditaram que poderia afrouxar o isolamento e viver a realidade de negligência, de covardia, de falsas notícias e de maldades institucionais. O número de mortos agora ultrapassa os 300 mil e devemos somar a esse montante as 434 mortes e desaparecimentos ocorridos entre 1964 e 1988. Tudo se iguala e envenena o ar. A ditadura é uma pandemia.



 

Crítico literário e escritor (Brasil), autor de “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, e “Queda da própria altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Participou da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris

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