A COMPETIÇÃO
Foi o pai quem deu a largada, imitando com a voz o estampido de um revólver. Logo de saída o pequeno ficou para trás, enquanto ela e o pai arremessavam para frente as pernas, lado a lado, ela caprichando nas passadas incrivelmente velozes para compensar as muito mais longas dele. O pequeno ficara para trás, sobretudo porque, entre afoito e distraído, detivera-se ainda um par de segundos antes de atender ao tiro de partida.
A cabeça dela batia acima da cintura do pai, mas a verdade é que, naquele instante, mal e mal olhava para ele, concentrada que estava no seu próprio desempenho. Limitava-se a sentir a presença dele ao seu lado, um vulto escuro e compacto, de muito tamanho, vestido com as calças compridas que nunca tirava. Sentia-se um tanto indignada com o fato de o corpo dele precisar executar tão menos movimentos que o dela. O pai dava a impressão de estar descansando no ar e, mesmo assim, parecia invencível. Era como se avançasse puxado pelo impulso das verdadeiras hélices que eram os pés dela, que atraíam tudo à volta, como imãs. Era capaz de apostar que ele nem sabia onde e como a filha aprendera a correr daquele jeito. O fato é que ela apreendia muito nas horas longe dele e da mãe. Eram horas e horas e dias e dias brincando no descampado ao lado da casa, vestida feito moleque, de tênis – mas às vezes descalça –, camiseta e short, muito diferente da Biazinha que ele via à noite, de pijama cor-de-rosa ou amarelo-pálido, ou aos domingos, quando botava vestido ou saia para almoçar na casa dos parentes.
Era no descampado que agora estavam, o pai, ela e Luquinha, e isso deveria proporcionar a ela ainda mais vantagem, visto que conhecia o terreno com a palma da mão. O pai gritou alguma coisa por entre lábios que, pela maneira de moldar as palavras, pareciam estar sorrindo, mas ela não conseguia entender, tão concentrada estava na sua tarefa e tal era a intensidade do vento zunindo nos seus ouvidos. Mas ficou mesmo indignada ao perceber que o preguiçoso, além de estar sendo carregado nas asas do seu jato propulsor, ainda se mostrava relaxado e bem-humorado. Acelerou ainda mais o passo a ponto de sentir o coração quase tocando aquela coisinha no fundo da garganta, que o médico chama de amígdala e a mãe chama de campainha.
Quanto ao Luquinha, ela agora não tinha tempo para ele, ele era muito pequeno. Só torcia para que não estivesse sentado na grama chorando e obrigasse o pai a interromper a competição para acudi-lo. Mas ela não estava ouvindo nenhum choro, talvez porque o vento ocupasse os seus ouvidos, o vento do descampado, um vento que morava ali.
Ela acelerou com força até sentir que, afinal, criara-se um vão ao seu lado, feito da ausência do pai. Sentiu um arrepio de medo, de solidão, agora sem ter com quem conversar até a linha de chegada. Essa, embora nada tivesse sido combinado, deveria ser o final do descampado, onde começava a avenida asfaltada. O descampado separava a casa da grande avenida, deixava longe os carros e as outras casas, as buzinas, a mercearia da Dona Paula. A excitação era tanta que ela nem quis se virar para confirmar a vantagem. E nem precisava, pois o pai deu uma tossida, pigarreou, resfolegou e ofegou, tudo praticamente ao mesmo tempo, dando a entender, sem deixar sombra de dúvida, que principiava ali sua derrota. Mas ela logo sucumbiu à curiosidade e olhou para trás, e viu o corpo dele em marcha lenta, encolhido pela distância, vestido com aquelas calças compridas e sapatos que usava para sair e trabalhar. Precisava fazer algo rápido para socorrê-lo, pai, eu te empresto meus tênis, pai, eu te trago o jornal, te dou um presente de aniversário, preparo a espuma de barbear! Mas então percebeu que além de tossir, pigarrear, resfolegar e ofegar, ele também dava uma gargalhada e gritava: muito bem!, vamos lá, vamos lá! Então ela sorriu para ele em retribuição e voltou-se para fazer o que tinha de fazer, quando notou que também Luquinha já o tinha ultrapassado.
O arrepio se mantinha, só que agora era de felicidade e alívio por saber que ele estava a salvo, e continuava a correr, mesmo dentro das suas limitações. Continuou a perfurar o vento a pernadas e a golpear o chão com seus tênis. A paisagem oscilava, mais ou menos como quando a pessoa treme na hora de bater uma fotografia. Já dava para ver os modelos dos carros que fluíam pela avenida, apesar do suor caindo nos olhos, e podia escutar o barulho dos motores misturado com o zumbido do vento. E lá de trás, de longe, vinham as palavras do pai, generosas, palavras de incentivo que o vento distribuía igualmente entre os dois, Luquinha e ela: vamos lá! vamos lá! E batidas de palmas, que deviam ser para ela, mas que o vento, mesmo assim, insistia em repartir.
Foi então que ela se virou para avistar o pequeno e, num segredo só dela, perdeu um tempão, jogou fora uma porção de milésimos e décimos de segundo, até mesmo de segundos inteiros. Paralisada de susto com a aproximação dele! As pernas chegaram mesmo a enveredar para trás, deu pulinhos sem sair do lugar. Foi como nos filmes de televisão, aquele momento de inexplicável hesitação do bandido com o revólver na cara do mocinho. Um segredo só dela.
Luquinha passou por ela como se tivesse sido arremessado, muito corado e mudo. Cruzou a linha imaginária de chegada, que ficava onde acabava o muro perpendicular ao da casa deles, o muro que dava para a avenida. Mas antes que o irmão vencesse também a fronteira entre o descampado e a calçada, quatro mãos o agarraram e o abraçaram, como nas partidas de futebol. Eram as mãos dela e do pai, que apareceu sabe-se lá de onde. E voltaram para casa assim: Luquinha, o vencedor, no colo do pai, e ela pendurada na perna dele, a perna vestida com a calça comprida. O pai atravessou o descampado com os dois, e não ofegou nem resfolegou nem uma vez. Ele era invencível.
Mário Araújo nasceu em Curitiba, Brasil, e vive em Xangai. É autor de duas coletâneas de contos, Restos (Bertrand, 2008) e A Hora Extrema (7 Letas, 2005), com a qual venceu o Jabuti, um dos prémios mais prestigiados no Brasil. O seu primeiro romance foi publicado em 2020 pela Faria e Silva. A sua obra está traduzida para francês, castelhano, alemão e finlandês.
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