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José Alberto Postiga

Atualizado: 28 de fev. de 2022





METAFÍSICA



Tudo isto vai para além de estar sozinho.

É metamorfose insone que opera na mente

antes mesmo de o corpo ser tocado pelo vírus.


O medo alastra ecuménico.

O sujeito são figura ameaça invisível,

inimigo do amigo,

da família,

do desconhecido,

anula os passos,

resume a vida à geografia da casa:

tranca a porta à respiração dos vizinhos,

despolui o ar que ocupa os vazios da sala,

dos quartos,

dos corredores,

da cozinha,

desinfecta as mãos com poesia

e com o prolongar contínuo do exílio

reflecte sobre a verticalidade dos ossos e das paredes,

dialoga com os móveis,

dá nomes outros aos objectos,

relê os Salmos,

inventa mobilidades através das tecnologias,

crente de que nesses hiatos de consentido sofisma

se alheia dos rubros mapas da pandemia;


mas deslembra a trajectória do Sol sobre os telhados,

os diferentes verdes das árvores e dos musgos,

os dialectos raros das aves de rapina,

as feições dos homens e das mulheres que como ele,

antes de se fazerem risco, fruíam a liberdade e a vida.


Tudo isto vai para além de estar sozinho.

É sacrilégio da esperança,

relatos de morte casa adentro em cifra

crescente,

nomes próprios subtraídos de letras até se

converterem em algarismos que trajam de

luto estatísticas e famílias,

vidas ceifadas pelo vírus sem direito aos

olhos dos seus para as chorar em despedida.


Tudo isto vai para além de estar sozinho.

O sujeito confinado enlouquece,

desafeiçoa-se da solidão e do silêncio,

pragueja à janela,

rodopia em torno de si mesmo,

abraça o gato,

o candeeiro de pé,

o frigorífico,

o bengaleiro,

procura corpos que não sejam só matéria,

espera a Lua e sai para a rua,

enche os pulmões de metafísica,

saúda um a um os noctívagos:

os cantoneiros

os taxistas,

as prostitutas,

os artistas famintos,

contabiliza a pobreza,

o vício e a disforia: são também pandemias,

e quando retorna a casa

transporta nos pulmões a arte intrínseca de ser vítima.


Tudo isto vai para além de estar sozinho.



Kerns, Suíça, 08-04-2021




 

Poeta, escritor, natural da Póvoa de Varzim, emigrado na Suíça desde 2005, publicou o seu primeiro livro, Palavras Sem Preço, em 2014, ao que se seguiram publicações regulares em poesia: O Inventário Do Sal, 2016, A Litania Da Cinza, 2018, Fevereiros Doutrinários, 2020. É autor registado no IGAC (Inspecção Geral das Actividades Culturais), beneficiário da Sociedade Portuguesa de Autores e sócio do PEN Clube Português.

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