LOURDES, MINHA QUERIDA AVÓ, A ESCRITA EM MIM
Via-te quase todos os dias. E ainda assim, foram poucas as vezes que te vi. Um dia, o avô morreu e eu não verti uma lágrima. Não sei o que se passou, as minhas lágrimas soltam-se com facilidade. Nisso, sou como o meu pai. Um momento de superação num filme, uma notícia triste, um gesto carinhoso, o Carlos Lopes a ganhar a medalha às tantas da manhã, o hino. E lá se solta uma lágrima. Mãe, porque é que o pai está a chorar? Ó filho, são estas coisas, as pessoas ficam assim…, explica-me a minha mãe, também já com a lágrima a soltar-se. Chorões! Também sou assim, acho que já o disse ali atrás. Isto é de família. Só que um dia o avô morreu e eu não verti uma lágrima. Eu estranhei e fiquei a matutar. Passado algum tempo, percebi. Ainda tenho a minha avó. Quando ela morrer, choro tudo pelos dois. Assustei-me. Morrer?A minha avó? Espera, o meu avô morreu? E eu não chorei? Alto lá, um dia a minha avó morre e eu passei pouco tempo com ela. Passei a visitá-la todos os dias. Cumpri quase sempre, mesmo que às vezes só com um olá, um beijinho, um adeus e outro beijinho. Ela gostava. Eu também. Mas doía-me não ver o meu avô que não chorei. E não sei porque é que não o chorei. Queria ter chorado. Mas enfim, nem tudo tem uma explicação. Lugar-comum? Sim, seja. A vida é um lugar-comum. E os maiores lugares-comuns são nascer e morrer.
Um dia, prometi levá-la à baixa de Lisboa.
Já não conheces aquilo, avó.
Pois não, filho, pois não.
Fui adiando. Não a levei. Até hoje. Dei-lhe a mão e pedi-lhe que fechasse os olhos. Ela fechou. Eu também fechei os meus. Conheço o caminho, vejo-o, não preciso de olhar. E, guiando-a, guiei-me. Chegámos num instante. Ela surpreendeu-se com a curta duração da viagem. Isto agora é assim, avó, fechamos os olhos e chegamos a todo o lado num instante. Olha o Rossio, olha como é bonito, ainda te lembravas, avó? Ela lembrava-se. Ou pelo menos dizia que sim. Podia até não acertar no meu nome e trocar João com António ou com Pedro, mas lembrava-se sempre do antigamente. Ou dizia que se lembrava. Assim do nada, lembrava-se de ter ido aos figos quando era miúda e de ser apanhada. Ai, filho, um dia o homem apanhou-me de volta da figueira e fez-me devolver os figos todos. Agarrou-me no braço e disse que se me apanhasse lá outra vez me levava à guarda. Fartei-me de chorar e de pedir ao homem que me deixasse ir embora e ele lá deixou e eu fui para casa muito bem calada. Se o meu pai soubesse, Senhor, era o meu fim. E eu ria, ria, imaginando-a borrada de medo a correr por Alvor ainda com o sabor dos figuinhos na boca.
Quero uma recordação tua. Um objeto. Pode parecer fútil, mas quero. Quero ter algo teu aqui junto a mim, como tenho os binóculos do avô. Pego-lhes muitas vezes, sabes. Gosto de ver os barcos lá longe. Um dia, embarco num cargueiro só para ver como é só ver mar à volta. Sei que não ias gostar da ideia. Coice coice, isso agora tem lá algum jeito ires pró mar, homem? E eu ia insistir, só para te ouvir. E agarrava-te o cabelo com força e fingia que ia puxar. Malcriado! Chega-te cá aqui que vais ver!
Quero uma recordação tua, Avó, uma coisa que sejas tu. Diz-me o quê. Eu não me lembro de nada. E julgava conhecer-te tão bem. Tenho de lá ir a casa. Tenho mesmo de lá ir, mesmo com medo, tenho de ir. Prometes-me que me dizes o que escolher quando lá for? Confesso, tenho medo de lá ir e de sentir o vazio daquela casa sem ti e sem o avô.
Já chegou o livro que comprei com o dinheiro que me ofereceste no último Natal. Queria uma coisa diferente dos mais de trinta que li desde que o mundo encolheu. Chama-se Infinito num Junco. É sobre a história dos livros, esses maravilhosos artefactos que permitiram que as palavras pudessem viajar no tempo e no espaço. Quis comprar uma coisa que permanecesse na impermanência. Como tu permaneces. O livro tem uma capa linda, avó. Também tu. Linda e cuidada. Nunca te vi um bigode. Andavas sempre com a pinça e com o espelho no bolso, podia faltar-te a lucidez para muita coisa, mas para a vaidade não. (A mão que tantas vezes te puxou o cabelo, acaricia-o agora uma última vez. O teu cabelo branquinho, fininho, sinto-o entre os dedos) Infinito num junco. A origem dos livros. Lourdes, minha querida avó, a escrita em mim. Olha, é um bom título para um livro. Talvez pense nisso um dia. Não agora. Isto não é um livro, nem uma crónica, nem tão pouco uma despedida. É uma lágrima. Um género literário que inventei agora mesmo. Uma lágrima. Pelo avô e por ti. Uma lágrima infinita que, por fim, chegou.
Faz assim, filho: um J, depois um o, a seguir um a, depois outro o e, no fim, um til por cima do a. Assim me ensinaste a escrever o meu nome. Assim me desconfinaste para o mundo da escrita. Eu tinha cinco anos. Lembro-me como se fosse hoje. Escrevo hoje como se fosse ontem. Todos os jotas, todos os às, todos os ós e todos os tiles são teus.
Nasceu em Cascais, onde ainda vive. É licenciado em Comunicação Social pela Universidade Católica Portuguesa, tendo enveredado pela carreira jornalística em 1999 no jornal A Bola. Em 2016, publicou o seu primeiro livro, O sofrimento pode esperar (Albatroz/Porto Editora), e em 2019 Quantas vidas temos? (Coolbooks/Porto Editora). Além de jornalista, é cronista e palestrante, debruçando-se habitualmente sobre temas como o sentido da vida, a aceitação e a resiliência.
Lindíssimo, João.
Parabéns 👏👏🌹