NO CONTRAPONTO DA INCERTEZA
Nesse nublado tempo de esperança sugada
Onde nossa certeza não passa apenas e só
Da inquestionável e absoluta dô d’incerteza
Até mesmo a liberdade outrora conquistada
Isso mesmo, agora, nada pode ser inequívoca
Exceto, nossa bendita vontade d’odiar/amar
Além da nossa capacidade atroz de coscuvilhar
De invadir, cobiçar e subtrair pão d’outra boca
Obcecados vivem e hão de morrer por coisas fúteis
E o remorso, e o peso e o nojo que gruda e impregna
E vai até às profundezas d’alma dos corruptos inúteis
Todos inúteis da vizinhança aos confins da minha terra
Todos eles, de vermes não passam e nem se comparam
Que mais falta dizer no contraponto desse tempo incerto?
O SILÊNCIO ESPESSO
Chovia-lhe a transparência no olhar
Miudinhas e oblíquas gotas a brilhar
Mas com o espesso silêncio na alma
Que transbordava fora a sua vivalma
Ergueu-se sobre si, dirigiu-se à janela
Puxou à esquerda a cortina de flanela
O jardim ostentava os tons primaveris
Ficou a apreciar o desenhar do arco-íris
O céu havia acabado de regar a terra
Raios de luz coavam de cima da serra
Na vidraça, solene espetáculo natural
Com jorrar dos raios de luz e, das leves brisas
Desabrochadas e hidratadas eram as pétalas
Todas as rosas lindas tornaram-se mais belas
VAGABUNDA ALMA LISBOETA
Em cada enigmático e vil poeta
Nascem os ecos d’alma profeta
Também a desconhecida faceta
Daqueles que viveram na sarjeta
Entre tanta enrugada cara preta
E na penumbra da fala indiscreta
Cai na noite e amanhece lisboeta
A vagabunda alma bateu caçoleta
Exorcizamos o fado desse planeta
No fim do dia vivido como estafeta
A vida é corrida para cortar a meta
Cantamos e sorrimos dessa vida de treta
Dançamos e enlaçamos como alfa e beta
Vivemos par’ amar, cantar e beijar a teta.
VELÓRIO DE CORPO AUSENTE
Abram a burra que esse burro que sou
Nunca fora capaz de abrir – confessou
Abram as burras de quem nação pilhou
Ao povo deixou pão que diabo amassou
Comprem as velas do meu tamanho
Se soubessem que em cada rebanho
Sempre esconde um corpo estranho
Que dá a nossa alma um gélido banho
Comprem também outra do formato
De um coração do capitão do mato
Não me perguntem porque refuto ir assistir
O velório de corpo ausente da minha pátria
É inadmissível a inversão de ordem natural
Tal como não aceito a morte do menino
Também não pactuo nem ponho veneno
Antecipando o velório de uma nação a pino
E em desencontro com o seu destinto hino
Agora que já sabem a razão da minha recusa
Encarecidamente peço: - rezem como deusa
Na nossa tabanca jaz coração que não repousa
Com angústia pela inverdade diariamente difusa
Por quem expressa, com beleza, nessa língua lusa
De que usa
Por vezes abusa
E não se escusa
Fazer da diaba musa
Vou gemendo e lamentando por aí
Pois, em mim, está atado todo o ato
Da arte, do canto e do brando pranto
Vaidade minha, que falta faz vela no enterro?
Não vou ao velório da minha martirizada Pátria.
SONETO AOS TRAIDORES
Se pudéssemos divisar a dor
Compreenderíamos o pavor
De quem consente o ditador
Albergando tanto dissabor
Nos recantos das albufeiras
Hastear-se-ão as bandeiras
Retumbar-se-á o pátrio-hino
Escutar-se-ão badalados sino
Para lá do asfixiante cântico da guerra
Há de sobreviver quem golpeia e serra
Todos os traidores da nossa amada terra
À tona a verdade vem com ardor
De nada vale consumar batota
O patinho feio é o traidor.
CARMA GLOBALIZADO
Sob fragmentos do céu azul
Ao ritmo infernal acordamos
Mas que inferno é o mundo fora
Ora olhámos para os lados e agora
Tomámos uma das direções
Não importa qual, todas elas
Vão-nos ensinar as mesmas lições
Ganhar é o dilema de todos Roubar
é a opção dos tortos
De garras afiadas assim saímos
Para que certeiro e fulminante
Seja o golpe à preza do dia
Pois o outro, é isso mesmo
Outro, de nada interessa
Nada e para ninguém importa
Importa sim quem dará sangue
Ao vazio e ao carma globalizado
É formato da modernidade A todo
e a qualquer preço
Fazem-nos crer que o perigo
Está para lá das nossas sombras
O desafio é desgrudar de nós mesmos
De nós, do que cremos e acreditamos
Da nossa verdadeira sombra e d'alma
Entregarmos a escravatura moderna Com
purificação, devoção e abnegação Ditam-nos
tudo, e, até algo mais
Até quando podemos respirar Ou
mesmo parar de respirar O desígnio
é tudo entregar Antes desse mundo
pirar.
PS: agora lê de baixo para cima.
Escritor, Poeta e Comunicólogo. Autor de vários livros de poesia, romances e mentor de duas Antologias - uma delas reunindo mais de 46 Jovens Guineenses - e colaborando em mais de 15 outras coletâneas. O seu primeiro Romance foi recomendado para estudos Universitário na Universidade Amílcar Cabral (UAC). Representou Guiné-Bissau pela Europa, África e América em vários encontros de Escritores da Língua Portuguesa. É vencedor de vários concursos de poesia na Guiné-Bissau e em Lisboa.
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