CARTA A MEUS ANCESTRAIS SOBRE AS MAZELAS DA 19 E OUTRAS COVID(ES)
ao Jorge de Sena*
Não sei que mundo vós nos desejastes, mas suponho que não tenha sido esta avalanche de possibilidades inquestionáveis cuja justeza se abriga em consensos forçados pela concordância das maiorias.
Se for verdade que, do túmulo em que jazeis, observais as nossas vivências, creio que vedes a forma brutal como mandamos a vossa ética para as cucuias e armamo-nos até aos dentes, não para despejar sangue conforme fizestes, mas para comprar almas, porque para nós de nada vale o sangue derramado. Basta-nos, sim, ver outros povos, quais defuntos errantes. Sem alma. Sem ego. Sem liberdade. Nem dignidade. Vivendo mortos em prol do cifrão, matando também gerações mesmo antes delas nascerem.
…Enfim, é assim que fazemos a nossa geopolítica antropófaga…
Sentado na minha escrivaninha, feita de madeira que escapara do contrabando para Ásia e preferira o solo pátrio para se deixar moldar e ganhar nova vida, observo, no meu smartphone, a quantificação de milhares de vidas, como se lhes tivesse sido desnudada a honra de estar vivo e só de números se tratassem. São pobres vidas deste mundo globalizado, reduzidas a números que saltitam graficamente em estatísticas de casos de infeção. De óbitos. De recuperados. Desta atroz e impiedosa pandemia global, que pelo hábito perene de atribuir designações até àquilo que nos enferma, a este mal chamamos de Covid-19.
Eis que me adentra uma dor que não se traduz em lágrimas. Lágrimas, para quê? Não são estas um indício de tristeza? Porquê estar triste se, hoje, a felicidade é uma questão de escolha, tal como nos dizem os manuais de autoajuda? No meu mundo a tristeza é uma fraqueza, um chilique, uma frescura medíocre que não atrai likes mesmo com hashtags.
Como vedes, não posso nem devo chorar, mesmo que me doa a sepultura, a cremação (ou qualquer coisa que valha) dos corpos que minguam no mesmo anonimato em que viveram. Uns desvivem porque no seu íntimo e no dos seus líderes, a Covid-19 nada mais é senão uma gripezinha fajuta, e outros porque assombra-lhes o maior dilema de todos os tempos (querer ficar e ter de sair de casa ou querer sair e ter de ficar em casa), cujo desfecho é sempre o mesmo: a morte. De facto, se não desvivem pela Covid-19, a fome chama a si essa responsabilidade.
Penso agora naquele mundo que nos desejastes e na possibilidade dele, utópico que é, fecundar a realidade, e percebo o quão distante disso estamos. Se as guerras, conflitos tribais e missões imperialistas fizeram de vós aventureiros incessantes, para os prantos de mães e mulheres que esposáreis, a Covid-19 impõe em nós outro desafio mais severo: ficar em casa!
Suponho que duvideis, mas, nestes tempos austeros, ficar em casa é mesmo um exasperante desafio:
O que mais molesta a alma de uma mãe: entre a vontade imaterializável de abraçar o seu próprio filho por este estar distante (mas com o alento de o fazer em breve, qual um corpo que se queira mesclar ao outro), e a vontade, também imaterializável, de o abraçar quando ele está a um metro e meio de si, sem nenhuma perspetiva breve nem aparente de o fazer, com um risco iminente de encontrar a morte e ciente de que as exéquias serão efetivamente um mero enterro da carne e mais nada?
Tristemente, nunca estivemos, em casa, tão perto e tão distantes dos nossos. Desinfetamos tudo e todos, mas nunca os corações que há muito carecem de desinfetantes. Mesmo em meio a esta pandemia global que impõe restrições desmedidas, não medimos nem restringimos as nossas ações imperialistas. Segregacionistas. Extremistas. Mercantilistas. E tantas outras ações –istas.
Tal como no vosso mundo, por serem de uma raça, de uma latitude, de uma pátria… povos há que são afugentados hipocritamente da excursão pró-busca do antídoto para esta pandemia global. Afinal, é preciso defender o trono da indústria farmacêutica, ainda que não reste um pedaço da humanidade para narrar as honras do último detentor do trono.
Com os melhores cumprimentos, despeço-me e, na vossa condição de deuses, suplico clemência por estas Covid(es) do nosso mundo que se despem na minha consciência, nestes tempos em que a boémia cede ante as restrições da 19.
* Poeta, ensaísta, crítico e professor universitário português, autor de “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”.
Elísio nasceu na cidade de Xai-Xai, Província de Gaza, sul de Moçambique. Graduado em ensino de Português, com habilitação para o ensino de Inglês, na então Universidade Pedagógica, actual UniSave. Dirige um blog, rectasletras, dedicado à Literatura e à Linguística. Faz também recensões críticas a obras literárias, maioritariamente moçambicanas. É docente, escritor e ensaísta, inserido na Associação cultural Xitende, um movimento cultural que dinamiza a literatura na cidade de Xai-Xai. Tem textos publicados no jornal O País e nas antologias Mil Poemas para Gonçalves Dias (2013, cidade do Maranhão); Galiza-Moçambique: Numa Linguagem e Numa Sinfonia (2016, Galiza); Fique em casa, amor e 19 Cartas para Covid-19 (2020). Co-organizou a Antologia poética Vozes do Hinterland (2014), Luanda. Em 2020 publicou o seu primeiro livro de poemas, Retroalimentações do Ego.
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