O DIA EM QUE TERMINOU A PANDEMIA
No dia em que terminou a pandemia, tudo continuou como antes. Ou seja, os cidadãos continuaram as seguir as Orientações Pandémicas (como faziam há tantos anos) e a viver praticamente da mesma forma. A vida mudou muito pouco, ou melhor, não mudou praticamente nada.
– No que depender de mim, a vida não mudará praticamente nada – disse o Presidente na reunião com o Conselho de Ministros para decidirem o que fazer, agora que o Conselho Médico declarara o fim da pandemia. A primeira pandemia fora tão grave, o risco de haver uma segunda pandemia dentro de semanas (talvez mesmo dias, horas, minutos ou segundos!...) era tão, mas tão alto, que o melhor a fazer era mesmo não informar os cidadãos de que terminara a pandemia. Era realmente o melhor a fazer.
– É melhor nem informar os cidadãos – sublinhou o semblante seríssimo do Presidente, dirigindo-se aos ministros e aos membros do Conselho Médico, reunidos desde madrugada no Salão das Grandes Decisões. – É crucial não se interromperem os Programas Terapêuticos e sobretudo os Preventivos que tanto sucesso têm tido.
– Que tanto sucesso têm tido, que tanto sucesso têm tido!... – repetiram os ministros em coro, entreolhando-se entre acenos de cabeça e palmadas nas costas.
No dia em que terminou a pandemia, tudo se passou exactamente como se nada tivesse terminado. Muito menos uma pandemia que formara parte integral das nossas vidas durante tanto tempo. (Há tanto, mas tanto tempo, que ninguém sabia ao certo há quanto tempo!) A verdade é que, apesar de ter terminado a pandemia, as crianças prosseguiram a vida escolar e social de sempre, com as máscaras-prótese marca Permanent (as líderes de mercado) implantadas no rosto. As famílias continuavam a observar o recolher obrigatório às cinco e meia da tarde, os professores idem, os motoristas de táxi idem, os empregados de supermercado idem, os funcionários públicos idem, as trabalhadoras de apoio sexual idem, os ladrões idem. (Ouviram bem, leitores, os ladrões idem!) Os funcionários das Grandes Empresas continuaram a trabalhar nas suas residências, na maioria dos casos, conduzindo as suas reuniões nos seus terminais digitais pessoais, terminando os dias acompanhados por uma rodada de cervejas virtuais, rindo e celebrando com os amigos nas redes sociais de sempre. Os médicos continuaram a dar consultas virtuais, a executar remotamente cirurgias arriscadas (que remédio!), a tomar decisões de vida ou de morte a partir da imagem que o terminal pessoal, melhor ou pior (ou seja, com mais ou menos falhas técnicas e ataques de hackers) proporcionava.
As famílias, portanto, apesar de terminada a pandemia, continuaram a viver nas mesmas Casas Pandémicas, nos mesmos Bairros Pandémicos, espalhados pela mesmas Cidades Pandémicas dos mesmos Distritos Pandémicos. Cada membro da família no seu quarto, apenas se reunindo na sala comum nos Dias Estatais Especiais, para fazerem rapidamente os seus brindes à sobrevivência do Estado, à sua própria sobrevivência, e para darem – mesmo muito rapidamente – os beijos e abraços possíveis, adaptados à circunstância de estarem todos, e terem mesmo de estar todos, sempre de máscara Permanent.
Seria tão perigoso afirmar que terminara a pandemia (‘muito perigoso’, sublinhavam os ministros, evocando as palavras do Presidente) que era preferível dizer que a pandemia prosseguia; era mesmo essencial, e no interesse de todos, dizer que a pandemia prosseguia e a bom ritmo; e que nunca tinha terminado. Aliás, caso fosse possível (e era!), seria ainda melhor dizer que piorava de dia para dia, que os números de infecções subiam vertiginosamente e nunca tinham sido tão maus.
– Nunca foram tão maus, ouviram? – lembrou o Presidente aos ministros, no tom de quem queria mesmo ter a certeza de que todos percebiam o que escutavam e o que tinham de dizer e fazer daquele momento em diante.
– Sim, senhor Presidente – disseram os ministros, tão em simultâneo uns com os outros e com as próprias palavras do Presidente, que jurar-se-ia que tinham ensaiado várias vezes o sincronismo da cena. E voltaram a repetir – Sim, senhor Presidente, claro, senhor Presidente, naturalmente, senhor Presidente, certamente, Senhor Presidente!
E lá ergueram os copos, sem as máscaras de marca Removable (que retiraram mal entraram na sala de reuniões, máscaras que, à primeira vista, se pareciam muito com as Permanent, mais baratas e apenas usadas pelo povo) abraçando-se, repetindo o abraço várias vezes, dando palmadas nas costas, voltando a abraçar-se em seguida.
– Nunca foram tão maus, senhor Presidente! – repetiram os ministros.
A propósito, voltou a dizer o Presidente, em que dados se baseou o Conselho Médico para afirmar tão peremptoriamente que a pandemia tinha acabado? Sim, em que dados, em que estudos, em que relatórios científicos? O Presidente queria saber. Queria saber naquele momento, naquele exacto instante. Aliás, exigia um documento com essa informação no dia seguinte de manhã bem cedo. Não podia passar do dia seguinte. Tinha de ser a primeira coisa a tratar, de manhã cedo, no dia seguinte. E – para bem de todos – o Presidente esperava mesmo que o documento fosse sólido, ou seja, bem fundamentado, testado, calculado, re-testado, re-calculado, e livre de conclusões que não fossem à prova de toda e qualquer dúvida. À prova de bala, de granada, à prova de bomba atómica se necessário! O Estado não tolerava – nem sobreviveria se tolerasse – um relatório com o mínimo elemento que não fosse escrupulosamente baseado na ciência, como é lógico; numa ciência, naturalmente, aprovada pelo Conselho Científico Pandémico.
– O valor do que dizem os “cientistas” entre aspas (friso aqui o “entre aspas”) do Além-Estado, cujos ecos nos chegam cá, por vezes, é nulo. Nulo! – disse o Presidente. E repetiram os ministros, com a mesma veemência que o Presidente colocava em todas as palavras que dizia:
– Nulo. Inteiramente nulo. Absolutamente nulo!
– A propósito, onde está o autor do estudo? Sim, qual de vós é o autor do estudo? – O olhar do Presidente, como uma lanterna rasgando sulcos luminosos numa sala escura, procurava um culpado.
Sentados a um canto do Salão das Grandes Decisões, cada membro do Conselho Médico fechou-se num silêncio mais pesado do que o das noites desde o início da pandemia, começada sabe-se lá há quanto tempo; e ainda mais pesado do que o silêncio dos dias desde o início da pandemia, iniciada sabe-se lá há quanto tempo.
– O Doutor jura que a pandemia terminou? Dá a sua palavra de honra, arrisca a sua reputação de cientista, a honra dos seus filhos e da sua família? Podemos então, de forma independente, dissecar, reconstituir, virar do avesso, confirmar e re-confirmar cada passo do estudo e vai garantir-me que não encontraremos nenhuma discrepância, um erro de cálculo, uma imprecisão? É que se não for este o caso... – O Presidente olhava fixamente o jovem médico-cientista que enrubescia até à raiz dos cabelos. – É que se for este o caso...
– Não posso jurar, Senhor Presidente – acabou por dizer o médico-cientista, que fora o principal autor do estudo, médico-cientista no qual, entretanto, tinham desabado os olhares de todos os ministros e de todos os colegas médicos-cientistas do Conselho Médico.
– Quer dizer que admite que pode ter-se enganado? – perguntou o Presidente, começando a abrir, levemente, mas muito levemente, um sorriso escarninho. – Admite essa possibilidade?
– Admito... – disse o médico, de olhos baixos, ainda muito corado. – Porém, – continuou o jovem médico-cientista, com uma cintilação estranha nos olhos assustados, num fio de voz que lhe escorria a custo, mas com serenidade – nunca me enganei neste tipo de cálculos. Se a pandemia não terminou, comporta-se como se tivesse terminado. Todos os dados que analiso (todos!) indicam que nenhum estado febril se pode agora atribuir ao vírus em questão, nenhuma pneumonia deve a sua origem ao dito vírus, nenhuma falência pulmonar, nenhuma entubação; nenhuma falência de qualquer outro órgão se pode, pois, atribuir ao vírus associado à pandemia que agora terminou...
O Presidente, agora também enrubescido, ouvia com ar sério, muito sério, olhos fechados, de perfil recortado contra a luz, estremecendo de leve até no gesto de levar o copo de água à boca, copo que manteve na mesma posição muito tempo, mal tocando os lábios. Também de olhos fechados, calados, os ministros estremeciam de leve. Os colegas do médico-cientista estremeciam da mesma forma, de leve, mesmo muito de leve, sem conseguirem retirar os olhos quer do colega, quer dos ministros, quer daquele Presidente estremecente, cuja presença parecia flutuar por toda a sala, de tão imponente e dominadora e carismática.
– E, no entanto, talvez não tenha terminado... – disse por fim o jovem médico-cientista, visivelmente cansado, limpando as gotas de suor da testa.
– Talvez não tenha terminado, talvez não tenha terminado!... – repetiram imediatamente os médicos-cientistas, muito aliviados e entusiasmados, a que se seguiram os ministros –Talvez não tenha terminado!...
– Talvez não tenha terminado?! – perguntou, em voz muito alta, o Presidente, estudando, triunfalmente, cada indivíduo no salão. – Nesse caso, porque não diz de uma vez que se enganou nos cálculos?! Como imagina, não nos podemos dar ao luxo de virar de pernas para o ar a vida de toda a gente com base num estudozeco que contradiz todos os outros trabalhos produzidos, ano após ano, pelos melhores cientistas do Estado. Um estudozeco baseado em dados que podem muito bem estar errados! Como se atreve a convocar-nos para esta reunião, fazer-nos perder tempo? Sim, como se atreve?
O Conselho Médico manteve-se em doloroso silêncio, cabeças baixas. E pensar que o relatório recomendava a suspensão imediata da vacina mensal; imagine-se, logo a vacina mensal! Recomendada por estudos produzidos pelos melhores cientistas durante anos, que digo eu, decénios. (E não vou além dos decénios porque a história do Estado ainda não está inteiramente estabelecida, ainda está por completar, ainda está em evolução e re-avaliação, se Deus quiser estará sempre em evolução e re-avaliação constantes!) A vacina que permite ao Estado não só providenciar a cada cidadão a preciosa dose do líquido imunizante que lhe salvará certamente a vida, prevenindo a infecção, mas que lhe proporcionará também a importantíssima avaliação médica mensal na qual a vacina se integra. Avaliação que permite aos médicos (e aos trabalhadores sociais em geral) saber o que se passa realmente com cada cidadão. Uma avaliação que lhes permite monitorizar, salvaguardar, manter, afinal, o estado do Estado. Graças à qual se sabe quem está doente, quem poderá adoecer, quem adoecerá em breve, quem adoecerá a longo prazo, quem adoeceu e não comunicou atempadamente ao Conselho Médico, quem conviria que ficasse doente, quem não conviria nada que adoecesse, etc, etc. Quem contactou quem, para fazer o quê, para dizer o quê, para escutar o quê (que possa interessar ao Estado) e em que circunstâncias (que possam interessar ao Estado). E não me refiro apenas a monitorizações no que respeita a este vírus, mas a todos os outros microorganismos que por aí circulam. Para não falar nas vulnerabilidades, não apenas biológicas, mas sociais. Sobretudo sociais. Sim, sociais! Vulnerabilidades à ameaça global dos vírus sociais que nos ameaçam a todos e certamente nos destruiriam se a avaliação médica mensal não prevenisse estas situações. Acha que o fim da vacina não implicaria o fim do Estado?
– Claro que implicaria! – exclamou o Presidente. A que se seguiu o burburinho crescente e preocupado dos ministros.
– Claro que implicaria! Claro que implicaria.... – Repetiram os ministros, antes de se instalar um novo silêncio que terá durado um longo e aterrador minuto.
– Mas encontrei a solução – disse o Presidente. – Encontrei a solução para o problema que o senhor tão irresponsavelmente nos arranjou a todos. – O Presidente fixou o jovem médico-cientista, que continuava a limpar a suor da cara com um grande lenço branco. – O senhor vai dizer que errou. E não só o vai anunciar logo no início do programa “Diário da Pandemia”, como vai declarar que, na sua opinião de profissional, esta pandemia não só não terminou como nunca terminará, não pode terminar, é uma impossibilidade científica que algum dia venha a terminar. E que, naturalmente, consequentemente, é preciso aprender a viver com o que nunca terminou nem nunca terminará; com o que é permanente, fixo, eterno. O amigo aceita fazer a declaração? – O olhar fixo do Presidente, iluminado por um sorriso já francamente amistoso, parecia fazer vergar ainda mais o pescoço e os olhos cansados do jovem médico-cientista.
– Aceitará?! Aceitará?! – perguntaram jovialmente os ministros, num tom divertido, e também os membros do Conselho Médico, aliviados, numa intensidade crescente, em que já se escutavam algumas gargalhadas. Todos os olhos se fixavam no jovem médico-cientista que, embora a contragosto, lá balbuciava um ou outro “Aceito...”, proferido entre os abraços emocionados dos colegas que, entretanto, tinham saído dos seus lugares para se amontoarem, ruidosos, em volta dele. O jovem médico, visivelmente exausto, sorria por fim, timidamente. Derrotado e já sem a estranha centelha nos olhos.
É professor associado de literaturas lusófonas na Texas Tech University, licenciado em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa e doutorado em Línguas e Literaturas Hispânicas pela Universidade da California em Santa Barbara. Foi Professor no Middlebury College e na Yale University (EUA). No Brasil, como bolseiro Fulbright, foi investigador visitante na Universidade de São Paulo com um projecto sobre Clarice Lispector. É autor de duas coletâneas de contos publicadas em Portugal Os monociclistas e outras histórias do ano 2045 (On y va) e Seis drones: novas histórias do ano 2045 (On y va). Os seus contos tiveram edições no Brasil: Estás livre no sábado? (Realejo) e na Colômbia Território (Vestígio). Fez crítica literária no Diário de Notícias, é letrista da cantora de Jazz norte-americana Stacey Kent. O seu primeiro romance Montanha Distante"(On y va) foi publicado em 2020.
Comments